Sinopse: Wilma Azevedo é uma escritora de contos eróticos e dominatrix de 74 anos. Mas ela é também Edivina Ribeiro, jornalista, mãe de 3 filhos, religiosa e esposa dedicada. Qual delas criou a outra? Seleção oficial na Berlinale e no Queer Lisboa.
Direção: Gustavo Vinagre
Título Oiginal: Vil, Má (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 29min
País: Brasil
Sem Censura, Com Limites
Exibido na edição de número 70 do Festival de Berlim em 2020, “Vil, Má” de Gustavo Vinagre merecia mais atenção do circuito brasileiro de mostras de cinema no ano que passou. Justiça, em parte, feita na seleção da edição especial da Première Brasil do Festival do Rio, que o disponibilizou de forma online e gratuita em uma janela de 48 horas. Uma obra que testa os limites da relativização de quase todos os espectadores que se dispõem a acompanhar a trajetória de Wilma/Edivina – uma mulher que assume que somos seres bem mais complexos do que simples definições aparentemente antagônicas.
O cineasta, conhecida por usar imagem e som como ferramentas provocadoras, nos instiga desta vez de forma que beira o singelo. Durante quase noventa minutos, ele usa quase que em sua totalidade um enquadramento centralizado e frontal da protagonista, que fala com poucas interrupções e questionamentos. Apresenta sua trajetória em duas partes. A forma como o público recepcionará o longa-metragem dependerá da maneira com a qual se conecta com o discurso inserido na fala daquela calma senhora, que parece contar uma história de ninar para crianças.
No recheio, entretanto, ela divide suas experiências como dominatrix. Por óbvio, seu objetivo ao narrar quase que abdicando de intensidade é naturalizar o que está sendo dito. Aventuras sexuais de grupos e indivíduos que usam a técnica de ir a fundo na dor para transformá-la em prazer e os encontros com outros que testam seu limite relacionando o gozo à escatologia. Não há porque duvidar da experiência partilhada, mas não devemos esquecer que a biografada também é uma exímia criadora. Ou seria o poder de criar uma consequência da criação de Gustavo e Wilma Azevedo? Autora de contos eróticos para revistas de boas tiragens das décadas de 1970 e 1980, ela se coloca como uma autoridade na arte da pornografia – idealizada ou consumada.
Até por isso, no início de “Vil, Má“, ela se define como “sexóloga por natureza”. Se aprofunda em suas memórias infantis para tentar encontrar em que momento o prazer se tornou parte da sua vida. Vai além e aplica um olhar crítico sobre seu primeiro casamento, forjado na lógica patriarcal. Na montagem, o diretor se preocupa em dar um ritmo para o filme que nos incentiva a fixar na mente as imagens. Todas as vezes em que fotografias e recortes de jornais antigos tomam conta da tela, a fala da protagonista é interrompida. Esse descolamento temporal e imagético ganha ainda mais sentido quando Edivina Ribeiro toma a tela no terço final.
Como já mencionamos, o grau de atração do espectador para com a figura retratada definirá sua percepção sobre o documentário. Quando chegamos ao ponto de virada, quando Wilma parece ter encontrado o seu limite a partir de uma blasfêmia, ela revisitará as mesmas memórias para dar outro sentido a elas. Sua fala começa a se tornar o que ela poderia ter sido – ou, de fato, foi. Uma trajetória bem menos excepcional, em que ela seria uma mulher convivendo com o reflexos da sociedade machista como traição e violência – sendo o sexo e a literatura espaços de redenção.
É uma teia costurada enquanto assistimos uma senhora que apenas não tricota porque entende ser fundamental tirar da frente todo o ranço reprodutor de padrões comportamentais. Um convite para que seja quebrada a lógica de que devemos permanecer limitados a certos aspectos de nossa existência. Para além da dicotomia entre divino e profano. Wilma e Edivina querem propor um pacto de coexistência e deixar mensagens de autoconhecimento e respeito aos limites do outro. Ah, mais do que isso, “Vil, Má” ainda deixa um recado final: o importante é seguir gozando.
Veja o Trailer: