Sinopse: Brasil, 2030. As irmãs Alayr e Sabrina estão ouvindo no radinho de pilha o julgamento que pode mudar os rumos de um país “sem energia”. Elas são surpreendidas por Fátima, a irmã que volta dos mortos para confraternizar nessa noite histórica.
Direção: Ary Rosa e Glenda Nicácio
Título Original: Voltei! (2020)
Gênero: Drama | Comédia
Duração: 1h 17min
País: Brasil
Bandeira Vermelha
“Voltei“, que Ary Rosa e Glenda Nicácio apresentam na Mostra Olhos Livres da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, à primeira vista, se parece com o longa-metragem exibido no ano passado, “Até o Fim”. Usando um cenário único e o encontro de irmãs, traça uma narrativa politizada e de afirmação de corpos femininos e negros. Contudo, muita coisa mudou na forma de fazer dos realizadores nesse intervalo de doze meses. Apesar de acharmos que a dupla tinha atingido um ápice criativo, eles mais uma vez superam as expectativas.
O longa-metragem nos coloca em 2030, em que os anos de desgoverno ao qual vivemos se institucionalizou em paralelo aos trâmites democráticos. Agora vivemos o Regime do Disparate, com uma aparente reforma do Poder Judiciário e uma nova constituinte (revelada no clímax da obra). Na continuidade de nosso processo atual, os direitos vão se esgotando, assim como recursos (financeiros e energéticos) e as irmãs Alayr (Wall Diaz) e Sabrina (Mary Dias) voltam, segundo elas, ao “tempo do radinho de pilha”.
Ficar sem energia por semanas seguidas se tornou uma constante em 2030, reproduzindo o que o Estado do Amapá viveu em novembro de 2020. Parece distante, mas em 2019 uma pesquisa revelou que 20% das famílias brasileiras voltaram a usar fogão a lenha por conta da alta do custo do gás (e em 2020 viralizou uma notícia sobre a Venezuela nos grandes portais oportunidade para a mídia romantizar nossas mazelas falando de “criatividade na cozinha” em oposição às dos vizinhos). Dentro dessa possibilidade da ampliação da distopia a qual vivemos (acredito ser difícil achar quem não concorde que vivemos em uma), Ary e Glenda formulam sua obra que nos mantém ainda mais conectados com aquela história.
Ao contrário do filme anterior, a caracterização das personagens não surgem tão marcadas, há uma naturalidade de revelar o passado, as opiniões e o que elas escondem sem que isso se torne pequenos monólogos enxertados. Os cineastas lapidam o que já foi uma potente criação, equilibrando bem discursos diretos e a alegoria política. Da personagem que trabalha em uma delegacia relatando o aumento de furtos famélicos ao rádio que anuncia a ministra Damares Ustra, tudo é composto para que todas as interações não soem absurdas – reflexo do Disparate ao qual já vivemos.
Qual será o estopim para que o Rei do Gado seja julgado pelos crimes humanitários que perpetua desde os anos 1990, quando angariou as viúvas da ditadura militar, enquanto ela mal fedia? Maltratando a jovem democracia ainda na incubadora, temos hoje um comandante que parece gestado como manipulação genética, de tão maleficamente eficiente que é, em todos os aspectos. “Voltei!“, então, marca sua posição ao mostrar como a elite brasileira manterá seus privilégios, mesmo em situações-limite. Aliás, Ary e Glenda apresentam seu filme enquanto estamos em uma e vale lembrar a falsa perspectiva de que um vírus letal nos nivelaria enquanto humanos – e que não durou duas edições do “Fantástico”.
Mesmo sem estar presente, esses privilégios se impõem na narrativa. Seja na realidade de 2030, seja na lembrança de atitudes do passado das personagens e que soam como um deboche. A volta do título é a de Fátima (Arlete Dias), representando a classe artística. Enquanto perseguições e discriminações forem tratadas como piadas ou liberdade de pensamento, seguiremos recebendo notícias de atentados, como o dessa semana com Carolina Iara, jovem que integra o mandato coletivo do PSOL na Câmara de Vereadores de São Paulo. O filme apenas flexiona um possível futuro próximo. Isso é, claro, perturbador.
Porém, Ary Rosa e Glenda Nicácio não fazem de “Voltei!” uma obra apenas perturbadora. Faz tirando aquele verniz teatralizado do filme anterior, dando fluidez até no uso da câmera, adicionando a música enquanto elemento de conexão. É um chamado para observarmos que a situação nunca muda: renovarão sempre as desculpas para matar o povo do Brasil, sobretudo o preto. A morte é um projeto – e de tão repetida, a frase já soa clichê. Porém, nunca esse projeto esteve tão escancarado – e sua execução tão eficiente. Entregando uma obra que politiza a performance e perfomatiza a política, os donos de um pedaço da Mostra Tiradentes avisam: é preciso voltar, de onde quer que vocês estejam.
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