1982

1982 Documentário Crítica Pôster

Sinopse: Quase que inteiramente baseado em trechos do programa de TV 60 Minutos, o filme revê a campanha midiática que dominou os 74 dias da guerra declarada pela ditadura argentina contra os britânicos pelo controle das Ilhas Falkland. Ao mostrar cenas como âncoras pedindo doações para a compra de armas, 1982 desnuda o poder da mídia de canalizar opiniões e, ao colocar o espectador no lugar de um argentino da época, ajuda a compreender como precisamos de mentiras em nome da esperança.
Direção: Lucas Gallo
Título Original: 1982 (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 31min
País: Argentina

1982 Documentário Crítica Imagem

Decolonizando Só Até a Página Dois

O documentário argentino “1982“, que integra a mostra competitiva de longas estrangeiros da 25ª edição do Festival É Tudo Verdade, dialoga muito com “Replay“, curta-metragem de Julio Napoli que pudemos assistir no Festival Ecrã deste ano. Enquanto o brasileiro utiliza programas de retrospectiva de final de ano da TV Globo, o filme de Lucas Gallo se baseia em reportagens do programa 60 Minutos, da Televisón Pública Argentina. Um debate fundamental sobre a influência da mídia na opinião pública, partindo da crise diplomática que levou a uma batalha de pouco mais de dois meses que ficou conhecido como Guerra das Malvinas.

Uma declaração de guerra muito comemorada pelo povo argentino. Um conflito que eles tentaram usar como marco na luta anti-imperialista e decolonial pelos latino-americanos. Ao ponto de levar a OEA (Organização dos Estados Americanos) proposta de extensão do boicote aos países da Coroa Britânica em toda a região. O resultado foi uma pilha de mais de mil mortos (entre batalhas e suicídios) e o dobro de feridos. Isso tudo em apenas 74 dias. Talvez um caso a ser estudado por estarmos ainda no início dos anos 1980, onde a fluidez da informação e a transitoriedade de opiniões acerca de um fato não eram tão dinâmicas quanto agora.

Se pensarmos que no dia 13 de março de 2020 muitos, apesar do receio, não acreditavam que poderíamos ficar isolados ou com pouca mobilidade por conta do coronavírus, basta jogar esses mesmo 74 dias para frente e ver como chegamos ao final de maio, após transitarmos da neurose ao negacionismo, da busca por vacinas ao apego por remédios sem comprovação, da construção de hospitais de campanha à denúncias de desvios de verbas. Essa não era a realidade há quarenta anos, apenas em casos onde a mídia hegemônica desse uma grande contribuição. “1982“, então, foca nessa análise, em uma obra demonstrativa.

Entrevistas de argentinos que alegavam estarem sentindo um misto de orgulho e medo. Apesar da América do Sul ter sua terra manchada de sangue, criou-se a lenda de que aqui é um território sem guerra, muito pacífico. Por isso, quando a população teve que dar a sua contribuição, sendo enviada para ilha como soldados e enfermeiras, essa angústia era natural. Histórias pouco conhecidas aqui porque não há, por parte do Brasil, interesse em entender as fricções sociais dos países vizinhos. Sabemos mais de política educacional norte-americana do que das conturbadas movimentações da Casa Rosada.

Como uma grande peça jornalística, as reportagens formulam suas próprias narrativas. Uma maneira de influenciar e, ao mesmo tempo, seguir a tendência. Da comemoração ao orgulho, rapidamente os argentinos tiveram que se apegar à fé católica e depois a uma crise financeira, até então, sem precedentes. Chama a atenção o respeito pela vida dos adversários e, no que há de mais impressionante no documentário, uma propaganda inimaginável na lógica capitalista: de desmotivação do consumo.

Gallo não faz tantas escolhas na montagem para adicionar o mercado publicitário, mas apenas esse comercial é o suficiente para abrir outra via muito curiosa de debate. Há uma tentativa de acalmar a população e orientá-la a só comprar o que entende necessário. Para muitos, isso é um indicativo de que estamos em derrocada. Não à toa, a derrota na guerra gerou a queda do Presidente, o General Leopoldo Galtieri e antecipou o fim do regime militar argentino. Até hoje essa preocupação em não sugestionar um freio no consumo é aplicada por aqui. No exato momento da cobertura do festival isso ocorre no Brasil, mesmo com o viés de alta no preço dos alimentos a equipe econômica do governo segue apostando no liberalismo total.

Por fim, o documentário mostra como a incursão pelas Malvinas provocou uma corrida atrás do próprio rabo. Mesmo com a soberania ainda em aberto, a Argentina entende ter direito sobre o território – não reconhecendo um referendo de 2013 que fez com que nada menos do que 99,8% da população confirmasse seu desejo de ser controlada pelo Reino Unido. Alegam que os ingleses chamam os habitantes da ilha ironicamente de kelpers, comparando-os com as algas marinhas encontradas ali. Mesmo considerando politicamente incorreto, o apelido segue sendo usado em referência a forma discriminatória com a qual eles tratam a região.

Só que a autodeterminação de um povo é reconhecida pela ONU e a Coroa não pretende abrir mão do direito de controle tão cedo. Em paralelo, os hermanos tentam incutir no povo que ali reside o conceito de “ser um argentino”. “1982” mostra como a imprensa consegue riscar um fósforo no meio de um barril de pólvora como esse e, mesmo em tempos de democratização do compartilhamento de ideias e informações, ela segue sendo uma importante peça nesse tabuleiro. Sorte que nessas terras andou em baixa governantes autoritários querendo ganhar qualquer coisa no grito. Porque na briga entre dois imperialistas, o certo é sempre ficar do lado da briga.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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