24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 3
Desconceitução
Neologismo ou não, a ideia de desconceituação surge em muitos instantes da sessão 3 da Mostra Panorama da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Seis realizadores, quatro mulheres e dois homens, nos fazem viajar por caminhos que – para os adeptos a rotulações e marcações – provocam o questionamento sobre a validade de vincular ideias fechadas a existências plurais e ilimitadas.
Desconceitua-se, então, família, feminino, povo – dentre outros. A impossibilidade de alcance por completo das leituras dos quatro curtas-metragens é culpa exclusiva de quem vos escreve. Por mais empatia e estudo que se possa ter, não habitar determinados corpos torna inviável consumar pretensões de definir filmes. Há quem vá além e teça juízos valorativos – mas nesse ponto extrapolaríamos e muito nossos objetivos. Só digo que: não, não façam. Parecem de reproduzir julgamentos, comunguem com a arte.
“Won’t You Come Out to Play“, da Julia Katherine, vai fundo na relação familiar. Todo o mergulho possível na experiência depende do desconhecimento da trama, nessa obra realizada durante o isolamento social iniciado em 2020, com os atores captando a si mesmos pelas câmeras de seus telefones celulares. As trocas entre pai, mãe e filhas traz como tema a ausência de lógica do afeto. As referências de feminino da protagonista, Virginia, são questionadas desde sua infância.
A diretora, então, constrói um forte drama, em um difícil trabalho de montagem a partir de fragmentos de sequências. Chama a atenção, portanto, a organização e a orientação para que a história originalmente pensada tivesse a potência alcançada. De fato, quando a curadoria de curtas-metragens mencionou em nossa entrevista que o volume de produções realizadas no contexto da pandemia não se refletiu na participação proporcional da Mostra, era óbvio que as limitações de interação seria um grande desafia. Por isso, a forma como Julia tece essa ficcionalidade madura a faz um dos destaques da programação.
“Três Graças” continua nessa desconceitualização da família enquanto células fechada e organizada e as relações entre o feminino como mote. Um território que provoca um encontro com a ancestralidade chama a atenção, já que o espaço abrigava uma Casa-Grande. Luana Laux faz uma obra de união de elementos e pessoas. A interação entre as três irmãs na mesa das refeições é apenas o início de outra narrativa de forte textura dramática.
Neste caso, a conexão ganha ares ritualísticos e a fé se mistura ao sangue e à dor. Luana faz uma interligação entre a reza, o casamento e o balé. Quase como se uma pudesse sentir o que as outras sentem, elas parecem ter seus anseios reunidos, de certa forma. A presença familiar de Simone Mazzer como Fátima amplia essa carga dramática, principalmente em uma maratona de filmes que, muitas das vezes, primam pela ausência ou desconstrução narrativa.
Assim como o rápido exercício do curta-metragem “Águas Vermelhas“, apresentado por Luane Costa no 2º FestCiMM, todos os elementos já mencionados se vinculam àquelas mulheres que, na completude do arco pensado por Luana Laux, faz uma transição geracional que confirma que temos ali histórias que serão sempre recontadas enquanto a sociedade infligir essas mesmas dores.
“À Beira do Planeta Mainha Soprou a Gente” segue a tendência da dramatização forte, mas há elementos que passam pelo curta-metragem que o posiciona em diálogo maior com o audiovisual brasileiro contemporâneo. Roberta Mathias escreveu antes sobre o filme (leia aqui o texto, escrito na cobertura do Festival Taguatinga do ano passado). Vale a pena reiterar todo o discurso de Roberta. Porém, revisitar a obra em uma sessão em que a politização das representações se dá em cruzamento com narrativas mais tradicionais, gera uma diferença.
É interessante como a carga imposta aos dois primeiros filmes enternece um pouco a história aqui contada. Não que o estômago ainda não embrulhe com a lembrança do dia 28 de outubro de 2018, data do segundo turno das eleições presidenciais. Aqui em casa acordamos no início da noite com a mais dolorosa queima de fogos que poderíamos testemunhar em nossas vidas.
Porém, Bruna Barros e Bruna Castro parecem concretizar a proposta do “não soltar a mão de ninguém” usando as ferramentas mais eficientes do cinema atual. Uma linguagem que nos faz transitar sobre nossas visões, leituras e sensações – sem necessariamente apelar para o documental puro. É possível que parte dos espectadores se envolva mais com as produções anteriores pelo tradicionalismo, mas é aqui que as imagens e as palavras tocam das mais diversas formas e pelos mais variados motivos.
Ao falar do alívio pelo autoconhecimento e outras questões, alcança algo que parecia impossível naquela noite de outubro de 2018: deixar um recado de positividade, mesmo que a resistência siga urgentemente necessária.
24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 3
Encerrando a sessão da Mostra Panorama, “O Jardim Fantástico” traz uma rápida contextualização sobre as propriedades da ayahuasca (que já mencionamos aqui na Apostila em nossa crítica de “Terras” de Maya Da-Rin) para trazer uma narrativa sobre a formação comunitária e a sensação de pertencimento. Quase como um elemento de conexão do mundo totalmente infantil com o que nós, adultos, equivocadamente chamamos de “vida real”, uma professora oferece a bebida para seus alunos, no intuito de permitir a conexão de suas mentes – e toda a criatividade oriunda da idade – se conecte com outros mundos possíveis.
É quase como se “O Senhor das Moscas”, clássica obra de William Golding, unisse o elemento fantástico e uma autodeterminação daquelas crianças enquanto grupo (início dos efeitos) e enquanto indivíduo (ampliação dos efeitos). Ao transcender ao comunicável nesse plano, os diretores Fábio Baldo e Tico Dias vão falar justamente de comunicabilidade (algo que anda em falta por aqui, de acordo com Arrigo Barnabé em “Ostinato” – visão a qual não concordamos).
Eles fazem isso não apenas pela fantasia, mas pelo lúdico na sua faceta mais mundana. Como, por exemplo, em uma cena em que as crianças brincam de telefone sem fio – atividade fundamental para entendermos como funciona a reprodução de discursos a partir de nossas percepções únicas. A atriz Zahy Guajajara, entretanto, não deixa de incluir a ancestralidade e a territorialidade enquanto discurso em sua imagem. Não estamos na ilha deserta de Golding e sim em um espaço em que devemos conhecer sua história.
Portanto, com esse último curta-metragem, se entendermos a riqueza de nossas manifestações individuais como regra, atingimos a desconceituação do todo – tornando conceitos uma perda de tempo. Se faz sentido viajar por representações que dirão a você algo diferente do que diz a mim? Talvez não faça, mas as possibilidades de trocas é o que faz de ambientes como a Mostra Tiradentes tão fundamentais para todos nós.
Ficha Técnica da Mostra Panorama | Sessão 3
Won’t You Come Out to Play (Julia Katharine, 16′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Minha mãe conta que quando eu nasci, ela estava lendo Mrs. Dalloway, e por isso me deu o nome de Virginia, mesmo contrariando meu pai, que sempre detestou esse nome. Na verdade, ele esperava que eu fosse o menino que ele sempre sonhou em ter.
Três Graças (Luana Laux, 16′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Numa fazenda, no interior do Brasil, que abriga uma antiga Casa-Grande e uma fábrica de cachaça, três irmãs vivem uma ciranda do destino: pedem a Virgem Maria a graça para um desejo que, ironicamente, é a outra quem realiza.
À Beira do Planeta Mainha Soprou a Gente (Bruna Barros e Bruna Castro, 13′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Através de imagens de arquivo pessoal e reflexões sobre as ambivalências que às vezes se imprimem em relações cheias de amor, “à beira do planeta mainha soprou a gente” apresenta recortes de afeto entre duas sapatonas e suas mães.
O Jardim Fantástico (Fábio Baldo e Tico Dias, 20′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Uma professora usa Ayahuasca durante as aulas com o intuito de conectar seus alunos a uma outra realidade. Durante um dos rituais, uma das crianças encontra uma estranha engrenagem na floresta.
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