Sinopse: Leila Mustapha é curda e síria. Raqqa é sua batalha: a capital original do Estado Islâmico, com 300 mil habitantes, foi reduzida a um campo de ruínas pela guerra. Treinada como engenheira, prefeita aos 30 anos, imersa em um mundo masculino, sua missão é reconstruir a cidade, promover a reconciliação e estabelecer a democracia. Uma missão extraordinária. Em “9 Dias em Raqqa”, uma escritora francesa cruza o Iraque e a Síria para conhecê-la. Nessa cidade perigosa, tem nove dias para conviver com Leila e poder contar sua história em um livro.
Direção: Xavier de Lauzanne
Título Original: 9 Jours à Raqqa (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 28min
País: França
Pertinente e Desarticulado
Com uma seleção totalmente focada nas grandes questões sociais e humanitárias do mundo contemporâneo, a mostra competitiva de longas internacionais do Festival É Tudo Verdade 2021 tem se mostrado uma dura experiência de falas e representações que buscam restabelecer a verdade. Pela primeira vez desde o início do evento, ao assistir “9 Dias em Raqqa” fica a impressão de que a temática se sobrepôs a qualquer outra análise nesta escolha. O diretor francês Xavier de Lauzanne não consegue transformar o objeto de sua obra em um documentário com unidade. Se perde em várias possibilidades, todas elas pertinentes, mas que se erguem de maneira desarticulada.
A montagem inicial nos traz alguns dos momentos da chamada Primavera Árabe. Começando com a Tunísia em 2010, além de imagens do ano seguinte na Jordânia, Líbia, Iêmen e Egito nos faz chegar à Síria. É lá onde algumas das cenas mais emblemáticas aconteceram, principalmente envolvendo a derrubada de estátuas. Uma delas era de Hafez al-Assad, que governou o país por três décadas até a sucessão de seu filho, Bashar – no poder até hoje. Tais protestos abriram uma brecha para o estabelecimento do Estado Islâmico e uma guerra civil sem precedentes na Síria.
“9 Dias em Raqqa” não é tão eficiente sobre o que levou o ISIS a instaurar um novo califado no ano de 2014. O cineasta parece perdido entre mostrar uma perspectiva do que aconteceu por sobreviventes da crise social e a importante e necessária reconstrução de qualquer território abalado por uma guerra. Se analisarmos o primeiro ponto, imagens de arquivo comprovam toda a violência de penas cruéis impostas pelos jihadistas, com chicotadas, apedrejamentos e fuzilamentos. Uma abordagem que Lauzanne decide dialogar com a série de ataques a Paris em novembro de 2015, incluindo à casa de shows Bataclan.
Diante destas perspectivas confusas, o documentário encontra um rumo na figura de Leila Mustapha. Parte dela as representações mais interessantes. Radicada em Paillet, minúscula cidade perto de Bordeaux, ela retornará à sua terra-natal por nove dias. O grande conflito, pouco explorado pelo longa-metragem, é o não reconhecimento de seu próprio território. Assim como tratamos em nosso texto do curta-metragem “Hunger Ward“, sobre o Iêmen, a desconfiguração causada por bombardeios torna esse laços bem particulares.
Por ser uma engenheira, essa perda de referência precisa ser trabalhada por Leila. Só que a montagem tenha aliar trabalho e afeto, como se o próprio desenvolvimento do ofício da protagonista não fosse suficiente para atingir a narrativa humanista comum ao gênero. Isso torna longos momentos da produção um conjunto de imagens que carece de entendimento. Sem contar a resistência natural de um território que viu no comando do Estado Islâmico uma perseguição e sufocamento ainda maior de mulheres.
Porém, o grande elemento fora de sintonia em “9 Dias em Raqqa” é sua trilha sonora, que parece extraída de um filme noir. Talvez seja este um ponto de desconexão que afete de plano a experiência da sessão. Por fim, quando as saídas das tropas internacionais ampliaram o sentimento de insegurança pelo medo da cooperação entre povos se arrefecer, Leia Mustapha nos entrega uma linda e importante fala, sobre almas em processo de germinação e como nascemos sem vínculos, nus – literalmente. A cena parece perfeita para um ponto de partida, uma sensível e contundente linha-mestra que a personagem do filme nos oferece, mas que a produção parece não ter percebido.
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