O Ano da Morte de Ricardo Reis

O Ano da Morte de Ricardo Reis Filme Crítica Pôster

Sinopse: Fernando Pessoa, um dos maiores escritores da língua portuguesa, estabeleceu um gigantesco universo paralelo criando uma série de heterônimos para sobreviver à solidão de sua genialidade. José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura de 1998, escreveu a história que vemos aqui, em que o heterônimo Ricardo Reis volta a Portugal após um exílio de 16 anos no Brasil. 1936 é o ano de todos os perigos: do fascismo de Mussolini, do nazismo de Hitler, da Guerra Civil Espanhola e do Estado Novo de Salazar, em Portugal. Fernando Pessoa, o criador, encontra Ricardo Reis, a criatura. Duas mulheres, Lídia e Marcenda, são as paixões carnais e impossíveis de Reis. E aqui, essa jornada tem como tema o realismo fantástico. Adaptação do romance homônimo do escritor português José Saramago.
Direção: João Botelho
Título Original: O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020)
Gênero: Drama
Duração: 2h 8min
País: Portugal

O Ano da Morte de Ricardo Reis Filme Crítica Imagem

Atingindo a Morte Eterna

Abrindo a 16ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, a produção portuguesa “O Ano da Morte de Ricardo Reis” adapta a obra de José Saramago pelo texto e olhar do cineasta João Botelho. O conhecido heterônimo de Fernando Pessoa nos leva a uma viagem para um momento-chave do século XX, em que a ascensão de governos fascistas levou a um período de morte e destruição no continente. Apresentado durante a Mostra SP de 2020, a atual janela de exibição vai até o dia 28 de junho e vale lembrar que o filme permanece inédito no circuito comercial brasileiro.

O ano é 1935, marcado pelo dia 30 de novembro, data da morte carnal do escritor lusitano. Nosso protagonista é um brasileiro, interpretado por Chico Diaz (homenageado com uma mostra retrospectiva no festival). Ele retorna a Lisboa depois de quinze anos longe do país de seu criador. Reis parece transitar por espaços na tentativa de fugir de conflitos, evitando os territórios onde insurgências, revoluções e golpes estão prestes a ocorrer. Isso levanta suspeitas sobre seu posicionamento político, que ele clarifica apenas em um momento: não acredita na democracia e abomina o socialismo.

Saramago faz de um dos grandes seres ficcionais da história de Portugal uma testemunha de que a abstenção política e a isenção, mais cedo ou mais tarde, se transforma em um posicionamento temerário. Não pela patrulha ideológica que começa a se formatar em autoridades fiéis a Salazar e sim porque a realidade escancara as injustiças perpetradas pelo fascismo. Já Botelho quer mitigar essa construção política da obra, primando pelo virtuosismo imagético, marca registrada e que foi objeto de fala de Chico Diaz na entrevista coletiva em que a Apostila de Cinema fez parte.

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O cineasta aproxima “O Ano da Morte de Ricardo Reis” de um noir por excelência. Por sinal, uma leitura mais comercial de uma estética que surge na Alemanha pré-nazista da República de Weimar, que qualificamos como Expressionismo – mas que se expressa para bem além disso. A presença do espírito de Fernando Pessoa, vivido por Luís Lima Barreto, quase nos leva às formatações insólitas de algumas das grandes obras de Saramago. Por mais que não de forma tão eficiente, ainda assim é bem menos atravessada do que o verniz norte-americanizado e existencialista de “O Homem Duplicado” (2013).

Fernando Pessoa partiu cedo demais para a sua genialidade e produtividade enquanto criador. Suas facetas seguem como objeto de estudo quase cem anos após a morte carnal. O encontro com a literatura contemporânea e o audiovisual pós-moderno acaba se tornando um choque de referências bem mais difícil de se mediar do que esperávamos. Há um leque de possibilidades e, ao não penetrar em nenhuma delas, ficamos nos sentindo batendo em barreiras de linguagens, formas e estilos que não se consolidam, não formam algo único.

Por mais que o espectador seja amante de Pessoa, Saramago, Botelho ou Diaz, não é fácil a conexão, a plenitude e a transcendência tal qual o projeto ousa criar. Boa parte porque a trajetória de Ricardo Reis enquanto pária, parecendo entender qual a busca que ele precisa fazer nas noites de Lisboa, descamba para uma fruição estética cada vez mais alinhada a uma poética que impõe certo experimentalismo, suga parte da narrativa que florescia carregada de personalidade. Ao se aproximar do fim, o filme materializa de melhor forma os debates filosóficos a partir de conceitos de morte e existência, possibilitando alcançar uma empatia que o público não obtinha até então.

O ateísmo de Saramago torna mais complicado o agendamento de seu encontro na eternidade, mas o longa-metragem da conta de trazer em parte seu espírito para nosso convívio e ampliar a sensação de imortalidade de seus escritos. Dentro do ato final, o clímax político se torna o grande destaque – exigindo até uma segunda imagem em nossa crítica. Não há como terminar a sessão de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” sem absorver parte de sua mensagem e atualizar o conceito de nacionalismo que coloca a Europa em estágio de atenção.

Em meio ao diálogo sobre a simbologia de gestos e cores de um encontro internacional de partidos fascistas – todos eles em processo de sedimentação nas entranhas do poder de seus países – os gritos de Salazar como se fosse um “mito” e as faixas com os dizeres “Deus, Pátria e Família” saltam aos olhos e ouvidos. Neste momento, até mesmo um arquiteto de imagens como João Botelho entende que toda a poética se esvai e não há mais espaço para outra imortalidade, a iluminada de Fernando Pessoa. É preciso que tudo isso se reflita em ações concretas, como o próprio filme enquanto algo que existe acaba se tornando.

Veja o Trailer:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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