Sessão Cine-Praça | 16ª Cine OP
Muito Além de Cinema
A 16ª Cine OP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, em sua mostra de curtas-metragens contemporâneos, com curadoria de Camila Vieira, dividiu as sessões de acordo com os territórios ocupados pelo evento na cidade. A primeira é a Cine-Praça, com cinco produções que nos levam em uma viagem quase sempre crítica e ainda assim um pouco saudosista sobre o século XX.
A primeira obra, “Descompostura“, é uma das mais fortes que a Apostila de Cinema assistiu em 2021. Nos fez lembrar a recepção que “A Morte Branca do Feiticeiro Negro” (2020) teve no primeiro festival que participamos e que selecionou o filme de Rodrigo Ribeiro, o Festcurtas Fundaj, organizado pela Cinemateca Pernambucana. Dali em diante sua criação a partir de imagens de arquivo percorreu alguns dos principais espaços do audiovisual contemporâneo brasileiro – e de forma merecida. Aqui, os quatro realizadores, Alline Torres, Anaduda Coutinho, Marcio Plastina e Víctor Alvino, revistam um caso de feminicídio passional de um homem branco contra uma mulher negra para trazer, em menos de dez minutos, um conjunto de questões envolvendo debates não superados pela sociedade brasileira.
Esta é apenas a primeira das produções que prestigiamos na CineOP oriundas do Festival de Cinema de Arquivo. Dificilmente a potência imagética desta será superada. Desde os primeiros momentos, em que a cidade já reflete as posições de poder, com fotografias de viagens de bonde e trem acompanhadas dos sons da locomotiva até a condenação da vítima pela imprensa e opinião pública na ponta final. Os cineastas desenvolvem uma trama particular, de forte repercussão geral e que se torna atemporal pela insistência em nos mantermos alheios a tudo isso.
A jornada se encerra com a ideia de gerações futuras testemunhando histórias parecidas com a de Maria Sapeca, como se a vida seguisse seu fluxo sem que nada grave presenciássemos. Contudo, para além disso, os registros de “Descompostura” surgem como uma aula sobre a construção social dos corpos periféricos. Ao longo dos últimos dias, em críticas a documentários como “Juízo” (2007) e “Operação Camanducaia” (2020) – este presente também na CineOP – falamos muito sobre desumanização e naturalização de um olhar que denota monstruosidade. Aqui, com dupla gravidade: mais do que o racismo, a ideia misógina de posse do homem e incapacidade da mulher.
Sessão Cine-Praça | 16ª Cine OP
A sessão segue com “Ouro para o Bem do Brasil“, documentário de Gregory Baltz que tivemos oportunidade de assistir durante a edição do ano passado do Festival É Tudo Verdade (e aqui você tem acesso ao texto sobre o recorte no qual a obra estava inserida). Uma outra forma de registrar a campanha de arrecadação de fundos para pagar a dívida brasileira, promovida pelos Diários Associados no início da ditadura militar – e objeto de um dos longas-metragens da mostra contemporânea, “Golpe de Ouro“.
O cineasta aqui faz uma obra mais próxima da guerrilha e utiliza meios modernos de obtenção de informação. Apesar da busca pelo documental histórico, o diretor quer encontrar alguns dos objetos que simbolizavam a contrapartida patriótica daqueles que doavam – e para isso se torna agente ativo de uma produção que adiciona um elemento persecutório. Porém, a arquivologia acaba sendo o destaque, ao lado das falas de Delfim Netto, Ministro da Economia da época. Como mencionamos em nosso texto do ano passado, se torna uma narrativa que não exige tanto contrapontos para aqueles que a analisam de forma crítica. A exploração do nacionalismo tupiniquim está registrados nos olhares e depoimentos de quem lesou e foi lesado.
Sessão Cine-Praça | 16ª Cine OP
A terceira obra também inclui na produção um velho conhecido da Apostila de Cinema. “República do Mangue” tem direção de Mateus Sanches Duarte, Julia Chacur e Priscila Serejo. O primeiro faz parte da Mil Fita Filmes, que fez bonita campanha pelo circuito de festivais no ano passado com “À Margem das Torres” e tivemos a honra de entrevistar há quase um ano, na semana em que eles foram anunciados como atração da 15ª CineOP.
Este curta-metragem nos leva a outro território, hoje conhecido como Vila Mimosa e diferente da Madureira que Ton Apolinário materializou. A arquivologia é utilizada para apresentar uma das formas de higienização dos espaços urbanos pelas caóticas e destruidoras administrações da cidade do Rio de Janeiro. Mais do que ressignificar espaços, descaracterizar paisagens e cenários, as autoridades locais têm o costume de desrespeitar direitos e garantias fundamentais de seus cidadãos sempre que isto atrapalha seus projetos políticos.
Voltando à construção social dos corpos mencionada em “Descompostura”, aqui se observa a potencialização do conceito de desumanização, atacando indivíduos de pouco apelo junto à opinião pública. O filme registra o afastamento das áreas de livre prostituição da zona central do Rio de Janeiro, levando a um ataque sistemático da polícia. Isso reforçou a necessidade daquela comunidade se unir para encontrar uma auto organização eficiente. A criminalização de suas condutas por uma sociedade hipócrita serve de combustível para os desmandos do poder institucionalizado.
Chama a atenção na parte final alguns rolos de filme combalidos pela ação do tempo, testemunhando o salvamento de imagens e histórias que seriam apagadas para sempre. Para encerrar com a representação de mulheres se resguardando, olhando de lado pelas suas portas, para uma sociedade que sempre deveria estar apenas envergonhada de si.
Sessão Cine-Praça | 16ª Cine OP
“Uma Invenção Sem Futuro” reúne três antigos projecionistas (Moacir, Cícero e Bezerra) e suas histórias sobre o glorioso passado dos cinemas de rua, antes da era da digitalização – e da migração para os centros comerciais, elitizando o consumo audiovisual. Lembra o longa-metragem de 2008 de Cristiano Burlan, “O Homem da Cabine“, que assistimos e escrevemos sobre ao longo da 2ª Mostra Cinemas do Brasil. Até na questão territorial, que remonta a um passado de ocupação da cidade de São Paulo.
O cineasta Francisco Miguez (também conhecido da Apostila de Cinema, escrevemos sobre seu curta-metragem “Ronda“, realizado ao lado de Mauricio Battiscuti) provoca uma experiência sensorial ao fazer uma dupla projeção de filmes: em película e no formato digital. Porém, em homenagem à nossa benjaminiana Roberta Mathias, é preciso dizer que há algo além dessa atualização tecnológica e de propagação de mensagem. Como ela mesma menciona no texto da criação do diretor enquanto estudante da USP, a cidade é parte fundamental dessa história – e os agentes nela inseridos também.
Portanto, mais do que os “futuros possíveis” de Miguez, que refletem o que se transformou a tal invenção sem futuro dos Lumiére, as múltiplas manifestações de um passado consolidado, da formação crítica e cultural de um território, da migração de trabalhadores de outros Estados para uma São Paulo sempre pulsante, a migração das salas de cinema populares para o pornô e a morte de uma linguagem tornam a experiência bem mais social do que somente audiovisual.
Sessão Cine-Praça | 16ª Cine OP
Encerrando a primeira sessão de curtas-metragens contemporâneos, “Vai!” – de Bruno Christofoletti Barrenha – relembra a fila de 23 anos sem títulos do Corinthians, em parte coincidindo com o período da ditadura militar no Brasil. Entre 1954 e 1977 o clube não levantou nenhuma taça e mesmo assim sua torcida foi a que mais cresceu no país – e talvez fosse hoje a maior caso a Era Zico não impulsionasse seu maior rival em popularidade, o Flamengo.
Mais do que isso, o Corinthians sedimentou uma ideia de que é um “time do povo“, algo que nem todas as cifras e estádios lotados serão capazes de exprimir. No mosaico representativo do cineasta, encontramos a áurea saudosista das produções que resgatam o futebol como manifestação cultural de grande impacto, mas também encontra espaço para se debruçar sobre os motivos que levaram a instituição paulistana a este patamar. Apresentado em um ano onde a preservação audiovisual ganhou ainda mais relevância, em uma crise sem precedentes na Cinemateca Brasileira, “Vai!” também serva para registrarmos aqui a notícia de que parte do acervo do Canal 100, fundamental na montagem do curta-metragem, pode ter sido totalmente destruído nos últimos meses.
Para aqueles que amam a isenção e ainda resistem a ideia da politização da cultura, o esporte parece ser o grande exemplo de união de indivíduos independente de ideologia. Porém, saiba que só existe o passado do futebol porque a produção audiovisual ali estava – e preservação destas obras foi realizada. Os dribles de Garrincha e o gesto com o braço direito levantado, com o punho serrado de Sócrates se mantiveram vivos para além das memórias de quem os testemunhou porque resguardamos as criações e os olhares de realizadores do período. Do lado de fora, manchetes sobre a resistência da diretoria de aceitar o movimento da Democracia Corinthiana e a participação da Gaviões da Fiel nos protestos antifascistas de 2020 também compõem a obra.
Na ala saudosista, o filme lembra um bom reencontro com o Museu do Futebol, localizado na mesma São Paulo do Corinthians. Narrações clássicas e captações de sons da torcida, de um clube que – após um longo período de seca – passou a gostar de questionar a sanidade de quem insiste em torcer para ele. “Bando de loucos”, “não me engano, meu coração é corintiano”, dentre outras palavras e representações contidas em “Vai!” e que mostram que sempre será muito mais do que futebol.
Sessão Cine-Praça | 16ª Cine OP
Ficha Técnica Sessão Cine-Praça | 16ª Cine OP
Descompostura (Alline Torres, Anaduda Coutinho, Marcio Plastina e Víctor Alvino, 2020, 7′)
Sinopse: Descompostura é um filme experimental com imagens em movimento de mulheres e jovens negras registradas, enquanto trabalhavam, sob uma estética da fratura. Seus corpos foram posicionados pelos olhos dos homens brancos das classes médias como se fossem partes que serviam de escora, suporte e de espectadoras das vidas que dependiam delas. O filme desarranja esta estética visual. Faz ver que, entre quem registrava e entrava, marginalmente, em foco, havia o olhar feminino negro. Que encarava, numa afronta, a câmera, demonstrando afirmação, contestação e constrangimento.
Ouro para o Bem do Brasil (Gregory Baltz, 2020, 18′)
Sinopse: Em 1964, dias após o golpe militar, o empresário Assis Chateaubriand criou a campanha “Ouro para o bem do Brasil”, por meio da qual convidava a população brasileira a doar bens e ajudar a acabar com a dívida externa do país. Ao traçar olhares sobre a campanha e o momento político da época, o filme é uma análise sobre a História a partir da memória do ontem e do hoje.
República do Mangue (Julia Chacur, Mateus Sanches Duarte e Priscila Serejo, 2020, 8′)
Sinopse: A Zona do Mangue do Rio de Janeiro era uma conhecida área de prostituição que enfrentou diversas perseguições ao longo do século XX. Entre 1954 e 1974, vigorou na região a chamada República do Mangue, um regime representativo, que sob controle médico e vigilância policial, as mulheres decidiam quem deveria assumir a administração das “casas de tolerância”. A partir de imagens sobreviventes, o curta propõe um outro olhar sobre esta memória de disputa e resistência.
Uma Invenção sem Futuro (Francisco Miguez, 2021, 23′)
Sinopse: Uma invenção sem futuro? Três projecionistas de película falam de cinema e do declínio de sua profissão durante uma mostra de filmes dos irmãos Lumière. Quando começou o cinema, quando ele termina?
Vai! (Bruno Christofoletti Barrenha, 2020, 20′)
Sinopse: O Corinthians passou 23 anos sem ganhar um título. Sua torcida, porém, só cresceu e se fez cada vez mais presente: tanto na vida do time, quanto na vida política do país.
Clique aqui e acesse a página oficial da 16ª CineOP.
Clique aqui e leia os textos produzidos na nossa cobertura da 16ª CineOP.
Sessão Cine-Praça | 16ª Cine OP