Sinopse: Em “A Separação”, Simin deseja mudar-se para garantir um futuro melhor para a família, mas seu marido Nader não quer por causa do pai com Alzheimer que ficaria para trás. Ela entra com um pedido de separação e Nader contrata Razieh para cuidar de seu pai enquanto trabalha. Certo dia ao voltar para casa encontra o pai sozinho, desmaiado e amarrado à cama; Razieh aparece como se nada tivesse acontecido e os dois discutem, na sequência Nader empurra a mulher para fora de seu apartamento; dias depois é notificado que Razieh estava grávida e teria perdido o bebê por conta da discussão. Os dois terão que resolver a situação na justiça, e tem pontos de vista muito diferentes do que aconteceu durante a briga.
Direção: Asghar Farhadi
Título Original: (2011) جدایی نادر از سیمین
Gênero: Drama
Duração: 2h 3min
País: Irã | França | Austrália
Verdades Desencontradas
Dentre todas as revisitações da Apostila de Cinema dos últimos meses, o drama iraniano “A Separação” é o único que parece não ter sofrido qualquer efeito do tempo. Pensar que o longa-metragem escrito e dirigido por Asghar Farhadi completou uma década da vitória do Urso de Ouro no Festival de Berlim é encontrá-lo na trilha da atemporalidade. Com dezenas de prêmios internacionais, sua campanha terminaria com um Oscar de filme internacional (o primeiro do Irã) e uma indicação pelo roteiro, perdendo para “Meia Noite em Paris” (2011), apesar do próprio Woody Allen considerar esse o melhor texto do ano. Uma obra que nos afeta a partir das relações familiares e em dinâmicas sociais que se forjam pela ótica de determinada comunidade e contexto político – mas que não deixa de provocar pelo universalismo de inúmeros temas.
Dois são os representantes do Estado com peso na narrativa. O mais conhecido é o juiz interrogador (Babak Karimi) que analisa todo o imbróglio envolvendo os personagens em um fórum abarrotado de problemas. Todavia, o primeiro é aquele que não vemos, na cena inicial, quando Simin (Leila Hatami) e Nader (Payman Maadi) se separam. A câmera nos mostra a perspectiva do olhar de um agente da lei que não está ali para julgar – e sim formalizar as intenções daqueles indivíduos. A mulher está ciente de que o melhor caminho para ela e a filha é aproveitar o visto de trabalho no exterior. Enquanto que o homem, em uma mistura de acomodação e genuína preocupação com o pai (Ali-Asghar Shahbazi), não quer embaralhar a rotina familiar.
A aposta de Nader é bem clara: ele quer “testar” Simin, apostando que ela não conseguiria passar duas semanas longe da adolescente Termeh (Sarina Farhadi, filha do diretor) e voltaria para os afazeres domésticos, incluindo a função de cuidadora do sogro, com Alzheimer avançado. Por isso ele muda sua leitura sobre aquela situação, a qual considerava os argumentos da esposa uma “coisa menor”. Usa a guarda da filha e os dramas internos para reproduzir a misoginia da sociedade, com o auxílio do servidor impaciente que quer, apenas, que eles assinem aqueles papéis.
Essa é apenas a primeira sequência de “A Separação“, que nos envolve em mais de duas horas com uma história linear, uma quantidade de personagens importantes que mal cabem nas palmas das mãos e, mesmo assim, é nada menos do que inesquecível. Na abordagem humanista do cinema iraniano, que ocupa os festivais e prêmios tradicionais a partir do sucesso de Abbas Kiarostami, temos aqui um de seus mais preciosos exemplares. Por sinal, sem qualquer traço de exagero dramático, há até alguns momentos em que as falhas de comunicação e desencontros de argumentos provocam uma gostosa curiosidade por saber no que tudo aquilo vai dar.
Depois das rusgas do casal, jogando Simin para o julgamento público por ousar romper com o patriarcado para buscar uma vida de autonomia, a religião é o passo seguinte do texto de Farhadi. Razieh (Sareh Bayat) é contratada para cuidar do pai de Nader, contando com a confiança da mulher em processo de divórcio. Ninguém esperava que os novos traumas daquele senhor, em parte provocados pela saída de sua referência da casa. É natural que pessoas em processo de demência tenha apenas um ponto focal em sua rotina e, no caso, era Simin. Ele agora não consegue se comunicar a tempo de fazer suas necessidades fisiológicas no banheiro e isso exigirá que a cuidadora limpe o idoso e cometa um grave pecado.
Dali em diante, uma sequência de acontecimentos trágicos tem início. Alguns o espectador não terá total esclarecimento antes que os personagens façam as pazes com a verdade. Desenvolvê-los seria correr o risco de tirar a chance de alguém que ainda não viu o filme participar dessa jornada. No Irã, que ainda admite a prisão civil por dívida (abolida quase totalmente do Brasil em 1992, com a incorporação do Pacto de São José da Costa Rica em nosso ordenamento jurídico), o marido de Razieh, Hojjat (Shahab Hosseini) não consegue substituí-la na função que a faz ir contra seus preceitos religiosos. O punitivismo estatal ganha outros contornos quando aqueles que forem acusados de algum crime, obrigatoriamente, precisarem afiançar-se para não serem recolhidos ao cárcere.
Ou seja, a sociedade de “A Separação” não apenas culpabiliza as mulheres sob várias óticas, mas ainda mantém todos os seus cidadãos sob risco de prisão pelos mais diversos motivos. Razieh está entre os credores e o poder de polícia do Estado, sem saber como agir. O cineasta, então, exige do público a antecipação de julgamentos – afinal, o grande evento-limite, aquele que justifica os desdobramentos trágicos da narrativa, não se materializa na tela. No fim, não é Simin que será testada como mulher em busca de autonomia – somos nós, acreditando que a nossa autonomia nos levaria a comportamentos diferentes. Terminamos a sessão bem mais próximos das dores daquele leque de pessoas.
Do Poder Judiciário à psicologia infantil, cada nova abordagem do longa-metragem vai tornando a busca pela verdade uma utopia. Estamos diante de um exercício de projeção, precisamos administrar os sentimentos de Nader, Simin, Razieh, Hojjat, Termeh (e sua tutora, interpretada por Merila Zare’i) à luz da leitura deles sobre os fatos. Aguardar uma revelação que nos levaria a uma definição sobre certo e errado é perda de tempo. Não se sinta perdido se, durante as duas horas do filme, você mude suas percepções, dê razão a alguém e depois a tire. Imagine “A Separação” como uma extensão de vida ali sintetizada, em que a opinião não é uma ferramenta rígida, ela muda (e se adapta) conforme a situação.
Nessa narrativa sobre intenções e o quanto a esfera de conhecimento sobre o outro impacta em nosso comportamento, as perguntas que queremos fazer àquelas pessoas são as mesmas que devemos fazer a nós: até onde vai o seu orgulho? Até onde você negará, dividirá ou relativizará suas responsabilidades? Você é capaz de encontrar no meio do caos a sua parcela de culpa? Depois que acontecer, como você administrará o que lhe cabe de remorso?
Reflexões que vão além do corte final de “A Separação“. Afinal, o que Termeh falará para o julgador – estranho aos fatos a ele apresentados – é indiferente. Uma escolha não é um ponto final. É apenas a renovação de ciclos de iminentes tragédias que assombram nossas rotinas.
Veja o Trailer:
Um grande filme e uma dura análise em seu post. Realmente, vi a arte do cinema imitar a vida: quantos conflitos, quantas considerações a serem feitas. Muito fácil se posicionar somente observando os fatos, difícil mesmo, é estar inserido nas situações mais variadas e complicadas presente no filme. Parabéns pelo comentário, principalmente por suas últimas palavras, que me ajudaram a entender o final do filme.