Nós

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10º Olhar de Cinema | BannerSinopse: “Se você não se identifica com o lugar em que nasceu e de alguma forma cria sobre isso, me escreve” – o anúncio de Letícia Simões nos classificados de um jornal possibilita encontros com as histórias de seis artistas radicados em Berlim. Temas como identidade, território e imigração perpassam as vivências compartilhadas com a realizadora de “Casa” (Olhar ’19) e “O Chalé É Uma Ilha Batida de Vento e Chuva” (Olhar ’17). Com sua interlocução andarilha, a diretora elabora fusões de diferentes mundos, inspirando uma acolhedora sensação de impermanência.
Direção: Letícia Simões
Título Original: Nós (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 20min
País: Brasil

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Partes Autônomas

O 10º Olhar de Cinema, que chegou ao fim na quinta-feira, será lembrado por vários motivos. Um deles foi colocar memórias reconstruídas, ressignificadas ou criadas por realizadores de todo o mundo como principal elemento de comunhão e diálogo entre as obras. Seu encerramento foi com “Nós“, novo filme de Letícia Simões, um “documentário cidadão do mundo”, que traz as palavras e as visões de um grupo de talentosas pessoas radicadas em Berlim em algum momento da década de 2010. Um período que trouxe para o Brasil seu próprio arco dramático, que começa com ataques à democracia e termina em múltiplas crises e incertezas sobre o futuro.

O primeiro a falar é o cineasta Karim Aïnouz, que inicia sua fala sobre transitar por vários territórios nos últimos anos em uma espécie de nomadismo moderno afirmando não gostar de “casa” como um conceito. Assim como Walter Carvalho e João Jardim fizeram com “Janela da Alma” (2001), que pluraliza várias aspectos do que entendemos enquanto visão em pequenas aulas sobre audiovisual, o diretor de grandes filmes como “O Céu de Suely” (2006) e “A Vida Invisível” (2019) aponta uma relação de consequência em suas criações, atestando que a cidade não costuma ser algo no qual ele se debruça ao costurar suas histórias – salvo exceções como “Praia do Futuro” (2014).

Na verdade, há algo que conecta boa parte dos discursos de “Nós” que vai além de não encontrar um espaço de pertencimento: é o desconforto que gera a ideia de pertencer. Quando tratamos de territorialidade, mais do que ancestralidade, estamos falando dos ônus de ser um elemento de uma complexa engrenagem (cada vez maior e mais disruptiva nas cidades). Algo que traz, na outra ponta, o sentimento de perda de autonomia. Não é querer ser um pária ou acreditar que se colocar à margem deve ser a regra e sim analisar de forma crítica o fato de que o ponto no qual estamos nos mundo carrega consigo induções de atitudes, comportamentos e surgimento de funções em uma comunidade.

Principalmente na arte, como as personagens do filme de Letícia. Para aqueles que não conseguem separar aspectos constitutivos como o território na leitura política de uma obra, há uma carga de responsabilidade que, talvez, não seja perseguida (ou melhor, até repelida) por esses agentes. Portanto, nem sempre a mudança por motivação econômica, criativa ou um exílio por perseguição ou qualquer incômodo e risco não necessariamente nos constitui – mas parece cada vez mais difícil não percebê-lo.

Além da produção brasileira já citada, “Nós” também constrói um ótimo diálogo com “Nadando Até o Mar se Tornar Azul” (2019) de Jia Zhangke, que assistimos na Mostra SP do ano passado, principalmente nos depoimentos em que a criação literária é parte do processo. As reflexões nesse trecho são mais profundas, tanto no debruçar sobre si (para alguns, escrever e se conhecer) e também em relação aos nomes que reservamos a coisas, ações e – claro – lugares. Essa fase mais introspectiva do longa-metragem permite trocas mais afetuosas com a cineasta, que entende que suas intervenções precisam ser mais presentes. Porém, alguns comentários nas primeiras horas de exibição foram no sentido de questionar a ausência de uma unidade, de um aspecto formal que se sobressaia.

Uma crítica que não parece lógica, uma vez que Simões busca fazer do documentário uma espécie de antologia, criando blocos individualizados e orbitando em torno de suas percepções, como se os múltiplos protagonistas fossem tijolos de um (ainda bem) fictício muro de Berlim. Um deles, Nitcheva Osanna, direto de Córsega, fala do etnocídio a partir da proibição dos idiomas originários em terras colonizadas (algo que se perdeu nos séculos de esmagamento das culturas americanas) e, fazendo todo sentido, vinculando a escrita à morte.

Aliás, uma metáfora que cabe bem a esse exercício de análise que sempre tenta equilibrar razão e emoção e que, em uma maratona de festival, nunca recebe o cuidado que merece. Os textos são como mortes para quem os cria – e guardá-los sempre lhe dá a oportunidade de revivê-los por qualquer motivo. Algo que me diz que esse sempre retornará à minha mente com a lembrança de um cansaço que impediu de materializar as tantas lições que aquele grupo de pessoas nos provém.

Até porque, se ele for levado como exercício de análise instigante como a obra de Carvalho e Jardim, será revisto sempre que me deparar com essa oportunidade no futuro. Seu métodos e processos, montados por Eduardo Chatagnier com uma fluidez que nada se relaciona com foco. Sabendo da forte união entre discurso e performances de Pêdra Costa, nossa personagem final, “Nós” termina com um questionamento que cai muito bem com a fadiga de meses infinitos de muito tempo de tela e pequenas mortes diárias dentro de casa. Período em que poucas coisas, como esse filme, parece nos tirar do ciclo de emoções autoindulgentes e nos projetar em outros espaços: como você sai de você?

Assista à conversa entre Camila Macedo, Leonardo Bomfim e a equipe de “Nós”:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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