Poeta

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Sinopse: Didar (Yerdos Kanayev) vive dividido entre sua dedicação criativa e existencial ao ofício de poeta e as necessidades de ganhar a vida através de trabalhos burocráticos, quando não francamente indignos, a partir de outros tipos de edição e escrita. Em meio a esses dilemas e seus efeitos na sua vida pessoal, o filme costura passado e presente com a incorporação da narrativa de um histórico poeta cazaque, usando de um humor preciso e da linguagem seca tradicional deste importante realizador ainda pouco conhecido no Brasil.
Direção: Darezhan Omirbayev
Título Original: Akyn (2022)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 45min
País: Cazaquistão

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Perseguição x Indiferença

A mulher solitária em um bonito auditório de poltronas vermelhas é a imagem de divulgação que chama a atenção em “Poeta“, longa-metragem do diretor cazaque Darezhan Omirbayev, exibido na mostra Outros Olhares do 11º Olhar de Cinema de Curitiba. Quando publicamos o texto já sabemos que a produção foi a vencedora neste recorte curatorial disponibilizado quase em sua integralidade na versão online, acompanhada pela Apostila de Cinema.

Os diálogos da obra com a nossa relação atual com a arte é, sem dúvida, o grande destaque. Com lindas construções de imagens, que atravessam o tempo e o espaço no Cazaquistão, é possível imaginar como o filme tocou os presentes nas sessões do festival. Até mesmo em sua quebra de expectativa inicial, que faz da narrativa quase um ensaio.

É nela que conhecemos Didar (Yerdos Kanayev), um poeta desiludido. Antes de observamos as expressões dessa melancolia acerca de seu ofício e da própria existência, a abordagem inaugural é bem mais generalista. Trata do que seria um problema da contemporaneidade e que, na forma eficaz do Capitalismo em resolvê-lo, vem destruindo culturas. Utilizando os mesmos dados da história de “Poeta“, 96% dos idiomas ainda vivos no planeta são falados por apenas 3% das pessoas. Se mantivermos o ritmo de morte dos idiomas, em menos de três séculos não sobrará nenhum – ou, apenas um, o inglês (claro).

Pela ótica de demolição dessa Torre de Babel que tanto contribuiu para a nossa complexidade enquanto espécie, a globalização vem promovendo desabaladamente a ideia de unificação de comportamento e consumo. Distantes enquanto falantes de uma língua com muitos adeptos no mundo, o português, apenas quando nos transportamos para uma região como o Cazaquistão, conseguimos dimensionar esse risco iminente de falência cultural. Sim, porque três séculos para a Humanidade é um piscar de olhos.

Uma das consequências desta unificação é a perda do hábito da leitura. Com a adaptação do mercado editorial e da imprensa, falta espaço para a readequação de uma das figuras mais antigas do que hoje se tornou produção de conteúdo (outrora conhecimento ou discurso): o poeta. Apresentado por Omirbayev na fala de um dos personagens como agente fundamental na formação e transformação das sociedade (a História mostrou que Platão também era capaz de errar), o que o filme faz com a figura em trânsito de Didar é trazer uma gama de relações na qual a arte se torna coadjuvante enquanto agente, mas protagonista em sua percepção para o público. Por isso que todos os momentos de virtuosismo parecem tão bem-vindos no longa-metragem.

A ideia de que não precisamos da arte – ou do artista – sofre interrupções na quebra da temporalidade. Acontece nas vezes em que o túmulo do poeta cazaque Makhabet é alvo de visitas e investigações. O respeito aos restos mortais e a chance de descobrir algo mais com a exumação de um corpo. Temos ali alguém que não viveu por viver, temos a arte como bem imperecível de uma cultura. Esta que não deve durar muito mais do que três séculos do lado de fora de museus e bibliotecas. A ironia é que a contemporaneidade parece se afastar também desses espaços enquanto resistência física de outros tempos. Estamos matando o que nos faz múltiplos e talvez não nos seja permitido o registro deste agonizar.

A melancolia de Didar contrasta com alguns espaços em que ele se coloca que são símbolos do nosso tempo. Esses são os grandes momentos de “Poeta”. Um exemplo é quando ele entra em uma concessionária de carros de luxo para sentar no banco de um Cadillac moderno. Seus sapatos surrados denotam não apenas a falta de dinheiro e a dificuldade de se sobreviver da arte. Há também uma desvalorização do bem material, uma falta de preocupação estética. Ali ele percebe que, sim, já que vamos viver este jogo (e jogar esta vida), é melhor que seja com sapatos apresentáveis – mais do que apenas confortáveis. Há um diálogo com outra sequência em uma loja de produtos eletrônicos, possivelmente dentro de um shopping, o que talvez seja o grande espaço unificador de comportamento e cultura.

Há pouco espaço para o lúdico porque a realidade já flerta com o absurdo (mesmo que, mais uma vez, melancólico e devastador). Nos sonhos do protagonista, a mulher que o deixa apaixonada está nua na mesa do trabalho – e lendo um livro. O filme sempre volta a Makhabet até se permitir imortalizar suas palavras nas paredes de um lindo túmulo. Já Didar segue transitando e se conectando nas TVs e tablets com imagens de telejornais e programas de entretenimento. Temos aqui outro agente fundamental de uma unificação, principalmente na normalização da desigualdade (patrocinado pela meritocracia como forma) e da violência – como se vivêssemos sempre a um passo de uma tragédia. Sinto dizer que vivemos mesmo.

Quando vai se encaminhando para o fim, “Poeta” revela a origem da imagem daquela moça em um teatro vazio. É o triste fracasso de um encontro com o escritor, desesperado para ser ouvido. O cineasta revelou que baseou sua ideia original a partir de um fato parecido que aconteceu com o escritor alemão Herman Hesse. Passamos do tempo de vangloriar-nos pelo reconhecimento. O Capitalismo cooptou a arte para que valorizássemos o lucro. Até que a abandonou na beira da estrada. Como diz uma entrevistadora em um vídeo do protagonista, são tempos pragmáticos demais para consumir qualquer arte que induza a reflexão. Houve, portanto, uma inflexão. A morte da arte será um capítulo importante no final dessa trajetória: a da supressão. Só não sei se teremos onde depositar seus restos mortais.

Veja o Trailer:


Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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