Sinopse: Madrugada de 23 para 24 de maio de 2016, no Centro de Porto Alegre. Policiais bloqueiam todas as ruas que dão acesso à Ocupação Lanceiros Negros, para cumprir uma controversa reintegração de posse solicitada pelo Governo do RS. Na rua, apoiadores se mobilizam contra a ação de despejo. Dentro do prédio, lanceiros negros estão vivos e determinados a resistir, enquanto um coletivo de advogados tenta suspender a reintegração na Justiça. O documentário reconstitui, através de depoimentos e imagens, o que aconteceu naquela noite que culminou ao amanhecer com uma vitória temporária, porém histórica de famílias que lutam por direito à moradia e liberdade.
Direção: Tiago Rodrigues e Jefferson Pinheiro
Título Original: Lanceiros Negros Estão Vivos – Uma Ocupação por Moradia e Liberdade (2016)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 18min
País: Brasil
Loucos por Moradia
Assistido dentro do recorte Despejo Zero da Mostra Lona: Cinemas e Território, “Lanceiros Negros Estão Vivos – Uma Ocupação por Moradia e Liberdade” nos aproxima da rotina de trabalhos desempenhados pelo MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas). Além disso, é um dos casos em que resta documentada uma batalha vencida pelo povo. O filme dirigido por Tiago Rodrigues e Jefferson Pinheiro traz o cerco da Polícia Militar de Porto Alegre, que deveria cumprir um mandado de desapropriação de posse na Ocupação que dá nome ao filme. Inclusive, é importante que se conheça a história por trás dos lanceiros negros, mais uma sistematicamente apagada de nossa História. Autorizada para o dia 24 de maio de 2016 – sempre lembrando que o cumprimento de decisões judiciais ocorrem entre seis da manhã e dez da noite – gerou uma espécie de atos preparatórios cruéis por parte da corporação desde a noite do dia 23.
O documentário traz esse debate ético acerca das tratativas (ou falta delas) entre um órgão público supostamente criado para promover o bem estar da população. Mas vai muito além disso. Usando uma montagem paralela, vagueia pela famigerada noite em que setenta famílias foram sitiadas sem qualquer necessidade pelo Estado, enquanto depoimentos contam como foram tomadas as providências para que uma decisão em caráter liminar impedisse a desocupação. De forte teor contextualizante e ao mesmo tempo utilizando imagens que nos colocam dentro das ações por parte dos moradores da Lanceiros Negros.
Os diretores se valem de um risco menor de confronto para criar imagens bem diferentes daquelas captações de ocupações e desocupações de outras obras, como as de Mirrah Iañez Silva, que já tratamos aqui em outro recorte da Mostra Lona com o filme “Derrubada” (2016) e na mostra competitiva do Festival Taguatinga de Cinema com “Rua Augusta, 1029” (2019). Com isso, a forma como as falas e os debates se inserem em um ritmo menos frenético consegue tornar mais eficiente as proposições dos entrevistados. Sendo assim, “Lanceiros Negros Estão Vivos” nos mostra uma sociedade onde a função social da propriedade, mesmo garantida pela lei maior do país há mais de trinta anos e com procedimentos bem diretos – segue ainda utópica.
A forma de articulação das pessoas ali ouvidas, nem todas parte de um grupo (há representantes de dentro do Poder Judiciário, por exemplo) é a prova de que a reforma habitacional no Brasil não apenas é possível, mas pode ser pensada com muito mais serenidade do que se imagina. O que não há é interesse, sequer em negociar com aqueles que – motivados pelas necessidades mais básicas de vida – tentam exercer de certa maneira essa pretensão. Um exemplo é uma das moradoras informar que tentou por anos o benefício do programa Minha Casa, Minha Vida sem sucesso. Ou seja, qualquer política pública peca por não atingir um requisito mínimo: a universalidade. Independente de qual setor se ataque, o Brasil segue deixando para trás um considerável grupo de cidadãos carentes do mínimo.
“Lanceiros Negros Estão Vivos”, até por ser um longa-metragem, encontra espaço para outros debates interessantes. A ausência de treinamento da Polícia Militar para desocupações e a importância do ativismo digital são causas e consequências de um país que gosta de acreditar que cura suas mazelas da pior maneira possível – e sempre na calada da noite. Há um ponto que, como operador do Direito, me tocou de forma mais direta. Acontece quando o recorte de classe chega à obra com um questionamento acerca da origem da imensa maioria de juízes e promotores, responsáveis por decidir o futuro da população quando o desrespeito aos seus direitos chega ao Poder Judiciário.
De fato, mais do que recorte de raça e gênero, o que mais preocupa na formação de quadros de agentes públicos tão importantes na sociedade é sua origem nas classes mais altas (ou na classe média, porém dentro de um recorte que acredita estar mais perto da riqueza). Por mais que as instituições de ensino desta ciência se preocupem em sedimentar princípios como da igualdade material e da dignidade da pessoa humana, há uma construção de pensamento por parte de quem se dedica a se tornar um representante da Magistratura ou do Ministério Público que dá de ombros para esse ideal coletivo.
O que torna ainda mais grave a constante crise habitacional no Brasil – e se revela quase ao final de “Lanceiros Negros Estão Vivos” é que a parte que oprime de nosso Estado não permite sequer que a sociedade civil se articule. Mesmo com toda a legislação e a jurisprudência inquestionavelmente ao seu lado, o esmagamento continua. E o final feliz, infelizmente tão raro em obras como essa, segue como um fator meramente temporário.