Sinopse: Com um aceno a “Crônica de Um Verão”, documentário vérité seminal de Jean Rouch e Edgar Morin, em “O Mês Mais Quente” Brett Story aponta sua lente observacional para a cidade de Nova York e seus arredores durante o mês de agosto de 2017. Moradores refletem sobre o futuro à luz do governo Trump e de demonstrações de supremacistas brancos, enquanto incêndios e furacões abalam as duas costas do país.
Direção: Brett Story
Título Original: The Hottest August (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 35min
País: Canadá | EUA
Os Patos e o Donald
A referência à famosa obra de Jean Rouch logo na sinopse nos poupa de um trabalho relacionado á historiografia do Cinema em nossa análise de “O Mês Mais Quente“, de Brett Story. Para aqueles que não conhecem uma das bases dos documentários etnográficos, vale a pena reservar um tempo para correr atrás de “Crônicas de um Verão” (1961) ou, pelo menos, ler sobre. Porém, em nada compromete a experiência de assistir a este longa-metragem. Para nós, fica a certeza das motivações do realizador de mais uma obra participante da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema. Ela vai fundo nas intenções de aproximar a arte da política, se inserindo no debate sobre a sociedade. Faz isso usando uma das mais fascinante matérias-primas que a Humanidade produziu nos últimos tempos: os Estados Unidos da América presidido por Donald Trump.
Na verdade, o filme trata das perspectivas sobre o legado do governo do agente laranja. Filmado em agosto de 2017, ainda estávamos prestes a completar um ano de sua eleição. Mesmo assim, as peças no tabuleiro da comunidade do Norte parecem bem conscientes de suas funções, ganhos e perdas. Story começa o documentário trazendo um sindicalista, que fala da janela de seu apartamento, ao qual teve que se mudar em adaptação à crise particular. Sindicalista é uma espécie em extinção em todo o mundo. Mesmo quando o audiovisual não lhe quer dar destaque, é impossível não trazer a perda de força de seus discursos – vale mencionar o personagem vivido por Irandhir Santos em “Piedade” (2019), obra de Cláudio Assis em vias de ser lançada comercialmente como um exemplo.
A precarização do trabalho é uma bandeira econômica do movimento liderado por Trump e seu sósia mambembe que governa o Brasil. É uma mistura de capitalismo selvagem com neo-neoliberalismo e analogia à escravidão, com total apoio dos aparatos tecnológicos. Portanto, é compreensível que a relação laboral seja o primeiro ponto trazido por “O Mês Mais Quente“. Em oposição ao sindicalista frustrado, que não vê futuro em suas lutas, o cineasta traz uma operadora de call center que fala com muito orgulho ser uma empreendedora. A realidade: faz faculdade de manhã e trabalho “apenas” (palavras dela) das 14 às 23 horas. Seu maior medo do futuro? Ficar solteira.
Apenas com esses dois depoimentos, o filme já nos coloca naquele espaço que transita entre a alienação e o conformismo. A facilidade de comunicação e a forma inteligente como dominamos as tecnologias, vem nos fazendo perder a percepção sobre essas nuances comportamentais. Pensando etnograficamente, já que o diretor faz questão de mencionar Rouch e fazer uma conexão direta com sua filmografia, se destaca um dos poucos retornos de entrevistados ao longo da produção. Um casal formado por uma ex-corretora que renega o termo “classe trabalhadora”, embevecida com o fato de não ter horários e locais fixos para desempenhar seus ofícios. O marido ao seu lado ensaia um empoeirado discurso meritocrático, típico da cultura local. Parece uma dupla inofensiva, aparentemente mergulhada nas armadilhas criadas pelos empresários e políticos, quase digna de pena neste arco que tende a discutir as novas profissões e relações de trabalho. Todavia, eles retornam mais a frente destilando racismo.
Falam de forma mais contundente até do que dois homens supremacistas brancos ali representados. “O Mês Mais Quente”, realizado bem distante de 2020, já se vale literalmente da expressão “novo normal” na construção de seu raciocínio. Antevê, ainda, o movimento Black Lives Matter como um processo de conscientização que tende a crescer cada vez mais. Até por isso se preocupa em trazer o “outro lado”, colocando em primeiro plano a convulsão social a partir do debate sobre racismo que as nações fingem que não existe. Os supremacistas brancos, ao contrário, dizem que sim, o racismo existe nos Estados Unidos. E sempre existirá.
Brett Story reserva algum tempo do longa-metragem para inserir narrativas e exercícios de montagem que não seria necessários dada a pluralidade e assertividade de quem fala no filme. Há um final que flerta com a alegórico, talvez inspirado no mesmo e-mail viral que fez a cineasta Kantarama Gahigri idealizar o curta-metragem “Etherality” (2019). O bom é que não há muito tempo perdido e grandes questões são colocadas de forma direta na mesa. Na mais impressionante delas, uma fala sobre a importância da renda mínima básica (que Eduardo Suplicy, tal qual um profeta, a defende há algumas décadas). E curiosamente demonstra como a automação excessiva pode ser benéfica ao discurso da esquerda. Chegará um ponto em que a substituição do trabalhador alcançará um nível onde a densidade da população sem ter qualquer fonte de renda será muito alto – e a solução será distribuir uma parte (pequena, óbvio) da produção das máquinas para o povo desguarnecido.
Propõe, então, uma reconstrução do pensamento progressista para se adaptar a essas realidades. Talvez os Estados Unidos, que nunca viram dentro do Partido Democrata um aumento tão expressivo de pautas representativas e líderes jovens tal qual ocorre agora, finalmente deem a sua contribuição. A eleição que ocorrerá daqui a alguns meses é um momento-chave deste processo. Porque a situação já é tão grave, que o documentário não apenas traz uma formanda em Física, de família tradicional, que se mostra assustada por não conseguir um emprego (terra das oportunidades?). Procura representantes mais jovens ainda.
Na cena mais emblemática de “O Mês Mais Quente“, vemos um grupo de adolescentes andando de skate. Brett Story quer saber deles as suas perspectivas, já que eles são o futuro materializado. Aqueles garotos, mesmo com o vírus do descompromisso, de um viver pautado na coragem e no otimismo de que são invencíveis, dizem que o futuro será horrível. Ou seja, se a esperança também já morreu, chegou a hora da sociedade ressuscitar alguns de seus valores.