Filmfarsi

Filmfarsi Documentário Crítica Pôster

Sinopse: Uma jornada pessoal por meio da história do cinema iraniano popular e pré-Revolução, o documentário desvela um Irã raramente visto. Quase cem filmes, alguns garimpados entre fitas VHS do acervo do diretor, são reunidos para construir o retrato de uma sociedade em rápida transformação. Filmfarsirevela um cinema de excitação, ação e grandes emoções, espelho desafiador para um país que lutou para conciliar tradições religiosas e a turbulenta modernidade de influências ocidentais.
Direção: Ehsan Khoshbakht
Título Original: Filmfarsi (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 23min
País: Irã | Reino Unido

Filmfarsi Documentário Crítica Imagem

Nem Holly, Nem Bolly

Filmfarsi“, assistido em um intervalo de três dias em conjunto com “Golpe 53” (2019) e “O Rolo Proibido” (2019) – uma demonstração de cuidado com as sub temáticas tanto na curadoria quanto na programação do Festival É Tudo Verdade 2020 nos faz pensar como apagamentos históricos bem gestados são muito eficientes. De uma geração que aprendeu História na escola no final da década de 1990 (ou seja, cerca de vinte anos após as revoluções, golpes e profundas mudanças políticas na região do Oriente Médio), para nós aquela região já foi apresentada tendo como característica o forte fundamentalismo religioso e os governos autoritários. Em uma sequência que partiu da Guerra do Golfo e chegou na do Iraque e teve o ataque ao World Trade Center como marco, incutiu-se na população do Ocidente que aquela área “sempre foi assim”, principalmente para justificar as dificuldades de entendimento (para sermos um mínimo imparciais) de relações como a de Israel e Palestina.

Com a ampliação do acesso a imagens de todo o mundo e principalmente na recuperação e ressignificação de arquivos, caiu por terra essa visão deturpada. Sendo assim, esse conjunto de três documentários (que não inventam nenhuma roda, não são pioneiros no tema, mas justificam essa explanação por se reunirem na mesma mostra) consegue provocar aqueles que seguem buscando perspectiva unidimensionais. Exibido no início da tarde sábado dentro das sessões fora de competição, chamada O Estado das Coisas, nos questionamos porque “Filmfarsi” não é um dos pleiteantes aos prêmios. Dois dias depois, quando “O Rolo Proibido” foi exibido, com um objeto inicialmente similar, compreendemos que havia ali um diálogo que poderia torna-los excludentes caso brigassem por um espaço – quando, na verdade, são complementares.

O longa-metragem dirigido por Ehsan Khoshbakht (que em 2013 lançou outra obra com temática parecida) resgata mais de cem produções do cinema iraniano anteriores à Revolução Iraniana de 1979, comandada pelo Xá Reza Pahlevi. Uma mistura do colorido e exagero de Bollywood com tentativa de emulação de Hollywood, os filmes eram muito populares no início daquela década – se valendo de gêneros como musicais e faroeste, tal qual esse dois polos. Contavam com personagens masculinos estereotipados, carregados de misoginia, arquétipos chamados de jahel e pahlevan. O segundo é um desdobramento do primeiro, que por sua vez possui uma expressão que consiste em forma de chamar aqueles homens de brutos ou ignorantes. É possível encontrar referências a esta forma em vários artigos, principalmente nesta tese de mestrado de Kelen Pessuto (que sem dúvida será lida quando essa maratona de festivais chegar ao fim). As narrativas também permitiam que algumas mulheres nas histórias demonstrassem certa liberdade, mesmo que baseada em figuras objetificadas ou masculinizadas. Porém, alguns entrevistados entendem que era mais livres, principalmente em relação ao próprio corpo – não cabendo a nós fomentar um controvérsia.

Chama a atenção em “Filmfarsi” como, aparentemente, este cinema lidou com a mesma visão exotizante de manifestações culturais que o audiovisual brasileiro identificou nos anos 1940 e 1950, no cinema de estúdio. Todavia, a aceitação pelas camadas populares parecia chancelar esse fazer artístico claramente advindo de uma elite intelectualizada que pensava suas produções com o bolso. Roteiros que buscavam a redenção dos protagonistas, como é comum. Assim que as contextualizações e alinhamentos históricos do documentário de Ehsan se estabelecem, há espaço para demonstrar como a divisão social também era um mote de parte dos filmes.

O destaque fica por conta do grande volume de produções e pelas mais diversas formas de adaptar tramas ocidentais, com refilmagens que iam de “Acossado” (1960) a longas-metragens de Hollywood ou dirigido por Fellini, denotando uma pluralidade que foi rompida pelo período revolucionário. O cinema popular foi uma das primeiras vítimas, com salas de exibição, inclusive, sendo incendiadas. Todavia, quando adentramos um período em que as produções se conduziram para um espécie de vanguardismo libertador, consolidou o conflito com o regime que se ascendia. Nisso, o documentário se preocupa em refletir como essa mudança na sociedade, que atacava o cinema iraniano, foi baseada em uma unificação ideológica do país, em um processo de conservadorismo que alcançava finalmente o poder.

Os passos que levaram o Irã até ali seriam trabalhados melhor em “Golpe 53”, que trata de um período anterior à Revolução Iraniana de 1979. O que “Filmfarsi” faz é trazer em sua trajetória a parte da magia de um cinema que precisou morrer para o estabelecimento de um governo que se baseava na desinformação e na criação de inquestionáveis opiniões. Ele teve seu renascimento em grande estilo, mas isso é conversa para outro dia. Evitamos vinculações exageradas com outras realidades, como a brasileira atual, porém, a mensagem do filme está dita. O sufocamento da arte, caso ocorra pelas mãos fortes da opinião pública de um povo supostamente em seu exercício de vontade, torna-se muito rapidamente um fato.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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