Nunca Raramente Às Vezes Sempre

Nunca Raramente Às Vezes Sempre Crítica Pôster

Relembre a crítica de “Nunca Raramente Às Vezes Sempre”, disponível no Telecine Play.

Sinopse: Em seu terceiro longa-metragem, a aclamada roteirista e diretora, Eliza Hittman (“Ratos de Praia”, “Parece Amor”), conta a história de duas adolescentes, Autumn (Sidney Flanigan) e sua prima Skylar (Talia Ryder), que viajam para a cidade de Nova York em busca de ajuda médica após uma gravidez não planejada.
Direção: Eliza Hittman
Título Original: Never Rarely Sometimes Always (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 41min
País: EUA | Reino Unido

Nunca Raramente Às Vezes Sempre Crítica Imagem

A Escolha Enquanto Fato

O primeiro passo para avanços em legislações que garantem emancipação e liberdade das mulheres passa pelo entendimento sobre a vulnerabilidade. Não uma constituição biológica ou moral, mas uma imposição de uma sociedade centrado na figura do homem – que ficcionalmente construiu dogmas de gênero. “Nunca Raramente Às Vezes Sempre” ocupou em 2020 importantes espaços nos circuitos de festivais. O filme dirigido por Eliza Hittman venceu, por exemplo, o Grande Prêmio do Júri do Festival de Berlim de 2020 e foi destaque no Sundance Film Festival. Uma obra que adiciona elementos do debate sobre o aborto, que imaginávamos que estaria desgastado a essa altura do campeonato, mas é um dos grandes pilares de uma polarização ideológica cada vez menos acinzentada.

O longa-metragem conta a história de uma adolescente de dezessete anos, Autumn (Sidney Flanigan), que viaja com a prima Skylar (Talia Ryder) para Nova Iorque já que no seu Estado, a Pensilvânia, apenas em casos autorizados de violência e coação é que a gestação pode ser interrompida – muito parecida com a lei brasileira. Hittman constrói uma obra que une aquela vulnerabilidade já mencionada com outra, inerente aos adolescentes. A protagonista sofre bullying na escola pelo visual e gosto alternativo e não recebe o apoio dos pais para exercer essa autonomia comportamental. Interessante que o prólogo, com uma sequência de apresentações no teatro da escola, usa músicas e roupas que podem se enquadrar ali nos anos 1950, criando uma sensação de atemporalidade à narrativa que se segue – mesmo que todo o andamento seja inafastavelmente contemporâneo.

No ano de 2007, duas produções tratavam de gravidez, com abordagens e linguagens bem diversas – e “Nunca Raramente Às Vezes Sempre“, curiosamente, parece exercer uma espécie de mediação entre elas. A cineasta foge da estética indie do cinema estadunidense das últimas décadas, uma inocência narrativa que começa a se esgotar e que teve em “Juno” (2007) de Diablo Cody (vencedora do Oscar de roteiro original) um de seus grandes sucessos comerciais. Todavia, bebe um pouco da fonte ultra naturalista de “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” (2007) – vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Não se vale tanto do choque quando a narrativa assim pede, mas tem uma mesma intenção de transitar.

Com isso, Hittman usa pouco o som não diegético. Por sinal, deixa para a segunda metade esse expediente, quando há certa aventura na ocupação do território urbano por Autumn e Skylar. Antes disso, a diretora apela muitas vezes para o silêncio como elemento. Essa opção de linguagem dá uma grande potência ao que acontece com vinte minutos de filme: o som do coração do bebê. No mais, a personagem de Sidney Flanigan pouco verbaliza por dois motivos: por mais ajuda que receba, aquela luta é solitária; e também há certa desolação pelo testemunho de novas reproduções de uma sociedade misógina. Sua prima – e em algumas cenas ela mesma – registram novas abordagens invasivas, abusivas e machistas a todo instante.

Debater aborto é importante, no longo prazo, para o bem da saúde mental de uma sociedade. A resistência sempre será proporcional à opressão. Ano passado, quando escrevemos sobre “Deus” (2019), documentário chileno que traz as manifestações de grupos feministas quando da visita do Papa Francisco ao país, lembramos que a força daquele movimento tem como um dos fatos geradores a rígida legislação sobre o tema, mantida desde a época da ditadura de Augusto Pinochet. Os Estados Unidos dão autonomia aos seus Estados para terem suas próprias leis e, de certa maneira, essas diferenças dentro do mesmo território contribuem para o exercício de algumas liberdades individuais.

Aqui no Brasil a negação do debate não nos faz apenas perder tempo – e sim caminharmos aos extremos. Dezenas de países descriminalizaram ou legalizaram o aborto (com todas as diferenças e nuances que essas palavras representam). Há poucos dias, foi a Argentina. Enquanto isso, provocamos pouco o intercâmbio de argumentos, o tema segue com forte sensação de tabu.

No terço final, a trilha sonora de Julia Holter ganha mais espaço em “Nunca Raramente Às Vezes Sempre“. Parece um lamento distante, quase sempre seguida de sons que podem vir do cérebro ou do útero de Autumn. A atuação de Sidney Flanigan nos toca de maneira dificilmente vista. Fica nítida a sensação de vazio, de abandono. Precisando falsear suas intenções, ela exige que o espectador abandone essa necessidade impertinente de julgamentos, essa busca por respostas certas. Não somos imunes a arrependimentos – e mesmo assim eles podem nunca ocorrer. A vida é uma linha reta e a adolescência traz consigo um grande peso, o de ruptura dos vínculos.

Eliza Hittman, a todo momento, parece nos lembrar disso. Quando parece que sua protagonista encontra um porto seguro, ela desfaz essa impressão. Isso não impede a jovem de demonstrar empatia com a prima Skylar – em uma impactante (e, ao mesmo tempo, frágil) cena em que ela estica as mãos para aquela outra mulher sentir um leve toque. Saber que alguém te quer bem, se importa com você, pode ser muito em uma realidade onde o amor é uma palavra rara. É quando ela presencia que algumas condutas de outros representantes da sociedade serão reiteradas. Um fato pode mudar os rumos da nossa vida, mas as transformações de uma comunidade nunca seguirão esse ritmo.

Comum a esse tipo de produção, há espaço para o questionamento da própria moralidade por parte do público. É uma filme de provocação de empatia e que, na minha posição de homem, jamais terei a capacidade de atingir. E justamente por não ter, é fundamental que a defesa pela autodeterminação ampla e irrestrita faça parte de qualquer análise possível de uma obra audiovisual como essa – que sempre será uma extensão das nossas percepções sobre o mundo.

Tanto que treze anos se passaram desde que os alertas sobre um aborto clandestino tomaram Cannes de assalto com a produção belga já mencionada. Mesmo assim, se avançou tão pouco (mesmo que pareça muito) que “Nunca Raramente Às Vezes Sempre“, apesar de certos formalismos e tradicionalismos, ainda teve força para ser selecionado para a Berlinale e ser visto por muitos como um dos grandes filmes do ano. Não que ele não seja. Portanto, enquanto alguma voz for sufocada, ainda seremos, enquanto sociedade, opressores. E nunca (ou raramente) poderemos ignorar a frágil construção de um ideal de vulnerabilidade em nossas relações.

Veja o trailer:

Ouça a música:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *