Mank

Mank David Fincher Filme Netflix Crítica Pôster

Com seis indicações, “Mank” lidera a corrida pelo Globo de Ouro deste domingo. Leia a crítica.

Sinopse: A Hollywood da década de 1930 é vista pelo olhar crítico do roteirista Herman J. Mankiewicz, em meio aos seus esforços para terminar o roteiro de Cidadão Kane.
Direção: David Fincher
Título Original: Mank (2020)
Gênero: Biografia | Drama | Comédia
Duração: 2h 11min
País: EUA

Mank David Fincher Filme Netflix Crítica Pôster

Cidadão Mank

Mank” não é sequer o melhor filme de 2020, dentre aqueles que têm a trajetória profissional de Orson Welles como mote. Circulou pelos festivais brasileiros (e ganhará mercado de streaming com facilidade esse ano), o documentário “A Jangada de Welles“, que retrata a passagem do realizador pelo Brasil, para as gravações de “É Tudo Verdade” (1993), ousadia dentro da negociação de produção com a RKO Filmes. Mesmo assim, não será nenhuma surpresa se o longa-metragem dirigido por David Fincher receba uma enxurrada de indicações – e até de prêmios – no Oscar 2021.

Primeiro é preciso registrar que somente a selvageria mercadológica da Netflix vem permitindo a ousadia estética de uma obra como essa. No melhor estilo marombeiro, a plataforma de streaming segue sua política do “tá pago” e abraça propostas (ligeiramente) fora do eixo comercial em lançamentos como “Roma” (2018) e “O Irlandês” (2019). Mesmo tendo Alfonso Cuarón, Martin Scorsese e agora Fincher como figuras carregadas de credibilidade na indústria, é fácil apontar tudo aquilo que os engravatados reclamariam em um pitching como esse aqui.

Portanto, há de se louvar em “Mank” o produto final tal qual o diretor idealizou (algo que, de certa forma, se vincula com a carreira de Welles). Um longa-metragem que aplica a linguagem clássica de forma absoluta. Se isso será lido como um maneirismo exagerado? Talvez. Pode ser que dependa até do humor do espectador, que pode receber a mixagem mono do som, os créditos e a trilha inicial, a inserção de elementos visuais vinculados à troca de rolo da época da película, dentre outros como uma simbologia divertida – ou como pura chatice.

A cena inicial, por exemplo, é uma das mais bonitas dos últimos meses, muito porque replica a forma como se pensava esse importante elemento narrativo antigamente. A grua se deslocando para o alto e entregando o cenário da longa sequência inaugural, onde o personagem mais relevante da trama será apresentado, em um diálogo que demonstra boa parte de suas características fundamentais para o andamento da obra. Na conversa, inclusive, Herman Mankiewicz (Gary Oldman) trata da importância dos diálogos para o desenvolvimento das narrativas, agora que o som chegou de forma incontornável ao Cinema. Momento em que voltou-se, então, àqueles que têm no texto teatral larga experiência.

É uma produção de alto risco no que diz respeito à forma, porque no que se extrai da direção de Fincher, estamos diante de mais um grande trabalho. Até mesmo a manutenção das palavras, da maneira como elas são lançadas, traz certa fidelidade com a Era de Ouro de Hollywood. Vale lembrar que o cineasta resgata roteiro de seu pai, Jack Fincher, falecido em 2003. Por sua vez, a narrativa por trás de “Mank” retoma o questionamento sobre a importância da autoria e do olhar do diretor – justamente pelas mãos de um dos mais celebrados das últimas décadas.

Na outra vez em que Hollywood seguiu essa releitura de si mesma sob esse aspecto, o resultado final foi quase tão luxuoso e, ao mesmo tempo, controverso. “Hitchcock” (2012) se baseia no livro “Alfred Hitchcock e os Bastidores de Psicose”, de Stephen Rebello. Esse nós lemos e podemos afirmar que o cuidado jornalístico e de apuração foram respeitados. Por sinal, é possível tratar do método do cineasta britânico a partir dessa leitura, já que a organização do texto – na forma de artigos – perpassa todo o processo de construção de “Psicose” (1960) – que se padronizou na filmografia de Alfred depois que lhe deram equipe e orçamento que o possibilitava. Isto é, uma pré-produção dissecante, pelo meio de storyboards e a produção sendo entendida por ele como “a parte chata”.

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Sendo assim, a controvérsia sobre a possibilidade de Saul Bass ser o verdadeiro mentor da clássica cena do chuveiro é apresentada como um lado da história. Por sinal, a editora Intrínseca, nesse link, é muito generosa na forma como apresenta os elementos do livro nessa parte específica. Já o artigo da Pauline Kael chamado “Raising Kane” de 1971 (disponível aqui em inglês) é mais assertivo e sensacionalista ao pregar a injustiça a Herman, co-roteirista de “Cidadão Kane“(1941). O que Fincher faz é chancelar essa visão e tornar o protagonista como figura de transição pela Hollywood dos anos 1930, que teria que se reinventar após a profunda crise iniciada com a quebra da Bolsa de Valores em 1929.

Há uma pluralidade de narrativas possíveis dentro de “Mank” e Fincher não aposta em uma só. Isso torna alguns exercícios estéticos perda de tempo se imaginarmos algumas possibilidades que a trama permite. A principal delas, para o que nos agrada aqui na Apostila de Cinema, é o crescimento da indústria audiovisual dos Estados Unidos enquanto ferramenta política e de lobby empresarial. As chances de uma migração para a Flórida (que não ocorreu, Los Angeles se desenvolveu a partir dos grandes estúdios) e a participação ativa de nomes como o de Louis B. Mayer (Arliss Howard) dividem espaço com histórias de bastidores (ou fofocas, para ser mais direto), envolvendo a atriz Marion Davies (Amanda Seyfired). A pertinência da eleição do republicano Frank Merriam em 1939 ser baseada em fake news promovidas pelo estúdio contra Upton Sinclair é uma oportunidade de atualização de objeto perdida – e seria muito bem-vinda, especialmente na época de lançamento do filme.

Já a maneira como o chefão da MGM simula um drama pessoa para negociar a redução de 50% dos salários dos funcionários – com o apoio das grandes estrelas (e que ganhavam muito mais do que um funcionário menor do estúdio) é um momento de destaque. Os ideais políticos do protagonista em um período de caça às bruxas comunga com outro longa-metragem que tinha o mesmo espaço (e um pouco mais adiante no tempo – final dos anos 1940 e início dos 1950) como premissa: “Trumbo: A Lista Negra” (2015). Já Irving Thalberg (Ferdinand Kingsley) é apresentado ainda mais superficialmente. Uma figura que se ergueu em Hollywood igual um cometa, morreu jovem, mas se reinventou algumas vezes nesse processo. Sua passagem aqui é quase como um cameo de luxo.

Fincher sabe como ninguém politizar suas narrativas, transformar seus personagens em peças de um jogo – mas a necessidade de trazer um verniz clássico ao seu filme torna esse componente de sua filmografia bem menos potente do que a média. Não é exagero dizer que ele cai na mesma armadilha de Quentin Tarantino em “Era uma Vez em Hollywood” (2019). Quando o próprio Cinema se volta para o espelho, é normal se perder nessa celebração de si, esquecendo que há – para muitos de nós – um filme a ser visto. Por outro lado, o empilhamento de produções dessa natureza talvez tenha me tornado um espectador mais cansado dessa abordagem do que o padrão. Se o leitor entender que o problema é esse, provavelmente “Mank” se ergue a ele como um grande filme.

Isso torna a experiência ligeiramente superficial para os que conhecem algumas das representações – e pouco didática àqueles que não se importam com a contextualizam e desejam um filme que se sustente por ele mesmo. É curioso como a liberdade (quase) total que realizadores – mesmo experientes – têm obtido em produções patrocinadas pela Netflix vem resultando em longas-metragens pouco enxutos e com narrativas que padecem de foco. “Mank” é mais um exemplo, mesmo que as ambientações e formulações pensadas por David Fincher tornem sua sessão acima da média. Um prazer baseado mais no resgate de uma época e figuras envolvendo a arte que tanto amamos do que nas engrenagens que o filme constrói para si.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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