24ª Mostra Tiradentes | Mostra Jovem
Observatório da Esperança
A Mostra Jovem da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes vem para garantir um futuro – do futuro – de grandes discursos e imagens no audiovisual brasileiro. Os três curtas-metragens que integram a sessão única deste recorte abrangem as regiões Norte, Sudeste e Sul e têm em comum uma busca por trazer pautas identitárias dentro de uma narrativa tradicional. Isso gera uma dupla consequência, já que testemunhamos não apenas o surgimento de outra geração de cineastas (ainda mais jovem daqueles que despontam nos festivais pelo país), como o da possibilidade de renovação de um público – para além daqueles que se identificam com obras mais vanguardistas.
A primeira produção foi uma revisitação. “Letícia Monte Bonito, 04“, de Julia Regis é apenas a primeira de algumas que estavam presentes na mostra de curtas gaúchos do 48º Festival de Gramado. Lá em nosso texto do Programa 2 mencionamos a música enquanto elemento fundamental de identificação da juventude. Ela retorna nos outros filmes, mas dessa vez, em um olhar bem mais detido na montagem apresentada em Tiradentes, outros elementos ganharam força. Aplica o tradicionalismo narrativo a ponto de usar o clássico grito Wilhelm em uma cena assistida na TV, por exemplo. Uma referência incrustada na mente do espectador-médio.
O primeiro deles é a introdução da fala enquanto elemento quando um panorama da história está posto, em uma formulação bem madura para a jovem realizadora. Já outra conexão que desperta interesse – e que volta na leitura sobre o terceiro curta-metragem da sessão, é a materialização de referências pelos objetos que transitam em uma sequência-chave. Nela, há um plano com uma movimentação de câmera que se inicia no alto do quarto de Laís (Eduardo Bento) e terminam em sua cama. Dos bichos de pelúcia que começam a se empoeirar no alto do armário até o vidro de esmalte e a maquiagem, identificamos também objetos antigos, que – sem dúvida – transitaram por mais de uma geração daquela família.
Essa maneira de construir uma linha do tempo, pessoal e familiar, nos enche de conteúdo sobre a protagonista – e deixa uma sensação ainda mais forte de mistério sobre Letícia (Maria Galant). Ao mesmo tempo, não deixa de ser um exercício para uma realizadora que já se apresenta como uma detalhista dentro do universo fílmico que cria.
Por fim, não deixa de ser uma história de associações, tanto no que somos quanto com quem somos. As reações dos corpos geram uma mistura de cumplicidade e admiração entre as personagens. Inspirado nas lembranças de Laís da Silva, a produção de Pelotas, interior do Rio Grande do Sul, foi realizada a partir de financiamento coletivo. E, sim, as músicas da Musa Híbrida (“Máquina” e “Viagem”) seguiram chamando a atenção nessa revisitação.
“Traçados” é mais uma construção narrativa madura, do cineasta Rudyeri Ribeiro. Diretamente da Universidade Federal do Pará (UFPA), o curta-metragem tem o poder de trazer a pauta identitária de igual forma, sem que soe maniqueísta. Isso se deve muito a forma como o texto insere a mãe do protagonista Léo (Miller Alcântara) em mais de um momento. O filme conta a história de um jovem e seus preparativos para sua primeira exibição artística.
Usando obras de seis artistas visuais, Rudyeri consegue, em menos de vinte minutos, nos trazer mais de uma forma de representação da homofobia. Em uma montagem que não deixa espaço para vazios, tudo o que circunda a narrativa tem peso. Logo no início, a notícia de um crime de ódio no telejornal local nos defronta com uma mãe em seu viés protetivo. Sem desenvolver a relação interna da personagem, observa-se que há uma reação instintiva, de consciência do que a realidade de um sociedade preconceituosa pode trazer.
Mais adiante o cineasta nos tira desse ambiente e nos mostra a politização nas instituições de ensino. Não há como não lembrar das representações tão significativas que formam os cenários de “Cabeça de Nêgo” (2020), um dos grandes destaques da Mostra Tiradentes do ano passado. Referências a Rafael Braga e uma resistência antifascista estão em cada uma das paredes daquele espaço. “Traçados” é uma produção que exala juventude, mas uma juventude que entende sua transição pelo mundo como um ato político.
Nessa forma indissociável de pensar o agir do outro, Léo não se rende às atitudes homofóbicas e racistas, até mesmo em uma festa. Um protagonista que possui seus atravessamentos e suas questões e que, quando retorna ao lar após evitar uma exploração indesejada do seu corpo negro usando sua voz, se depara novamente com a mãe. As tranças são a desculpa para um arco bem mais complexo na trajetória daquela senhora se forme. É um antagonismo, que não vem de sua personalidade, mas de uma mistura de preconceito pela ignorância ainda não escoado e um medo pela perturbação da paz do filho que ama.
A Mostra Jovem se encera com “Por Outras Primaveras“, uma obra que não deixa de trazer grandes contribuições aos debates gestados pelos outros filmes. Todavia, Anna Carolina Mol nos traz uma narrativa um pouco mais doce, em que retoma questões referenciais identificadas no curta-metragem de Julia Regis. Nívea (Rebecca Kassab) é uma jovem que acaba de perder a avó, uma pessoa que lhe servia de porto seguro e respeitava suas decisões e escolhas. Ela, então, é “sequestrada” por duas amigas que a levam em uma viagem de carro pelo sul de Minas Gerais.
Aqui voltamos à música enquanto elemento. Rita Lee e The Mamas and The Papas aparecem ao lado de bandas como Sara Não Tem Nome e Graveola e o Lixo Polifônico. Não deixa de ser uma maneira de unir revisitações com a busca emancipatória de suas próprias referências. Algo comum aos jovens – e talvez por isso o encerramento com essa produção seja tão significativo. “Por Outras Primaveras” nos faz olhar para frente. Quando encerramos um ciclo tradicional de formação em uma faculdade (mesmo que uma lógica vinculada a um recorte de classe) tendemos a ser tomados por esse medo do imprevisível. Parece que abriremos um novo livro da vida, porém com as páginas assustadoramente em branco.
As três mulheres, então, refletirão sobre isso. Não sem antes questionarem o que antes era visto como conquistas. A própria libertação da pílula precisou ser desconstruída por uma geração que agora luta pela libertação… dessa antiga e suposta libertação. Há um arco narrativo que Anna Carolina Mol faz por meio dos diálogos, que surgem dessas provocações entre elas até a conclusão de que há, de certa maneira, uma “romantização da juventude”. Um desafio dessa produção, feita enquanto trabalho de conclusão de curso da graduação da PUC Minas. A maneira como a linguagem se articula exige uma montagem que nos desloca para o futuro – mas o futuro imediato das personagens. Para quebrar o engessamento que um diálogo em um acampamento nos traz, há um revezamento entre essa sequência e a reunião de jovens no observatório em São Tomé das Letras, a cidade preferida dos extraterrestres (e que se manteve livre da covid-19 por meses, apenas evitando novos humanos em seu território).
Isso dá um ar sintético ao filme, mesmo que seu objetivo parece ser mais para o poético. Talvez seja a sensibilidade de terminar uma sessão de ótimas narrativas, de talentosas pessoas, como se a poltrona de casa (infelizmente não a de uma sala de cinema) fizesse de Tiradentes um observatório também. Só que, ao contrário de Nívea e suas amigas, enxergamos muita coisa boa no futuro do audiovisual brasileiro.
Ouça Máquina, música de Musa Híbrida – trilha de “Letícia Monte Bonito, 04”:
24ª Mostra Tiradentes | Mostra Jovem
Ficha Técnica da 24ª Mostra Tiradentes | Mostra Jovem
Letícia Monte Bonito, 04 (Julia Regis, 20′ – Brasil, 2020)
Sinopse: No interior, Lais conhece a intensa Letícia, com quem passa uma tarde letárgica de verão.
Traçados (Rudyeri Ribeiro, 19′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Um jovem universitário às vésperas de sua primeira exibição, Leo tenta encontrar a melhor forma de expressar tanto sua arte como quem é.
Por Outras Primaveras (Anna Carolina Moura Mol de Freitas, 22′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Após uma grande perda, Nívea embarca em uma viagem ao sul de Minas com suas amigas: Serena e Iara. Juntas refletem sobre tudo aquilo que as fazem ser quem são.
Ouça Geografia, música de Sara Não Tem Nome – trilha de “Por Outras Primaveras”:
Clique aqui e acesse os filmes da Mostra Tiradentes (até 30.01)
Ótimas críticas Jorge!!!
Só queria deixar uma observação aqui sobre o filme “Letícia, Monte Bonito, 04” (Julia Regis, 2020). Na verdade, o quarto em que Letícia e Laís passam a tarde é da irmã de Letícia, Luana.
Isso nos é apresentado na cena em que Laís chega até o rádio e é recebida pela Letícia, de um modo um pouco grosseiro, por ter uma desconhecida mexendo nas coisas de sua casa. Contudo, ao ver que não foi por mal, Letícia convida Laís para conhecer a coleção de CD no quarto de sua irmã, que não está por conta da faculdade.
Além disso, a 24º Mostra de Tiradentes nos apresenta o filme desta forma: “A Mostra Jovem começa com uma viagem pela estrada na produção gaúcha Letícia, Monte Bonito, 04, de Julia Regis. A jovem Laís chega com seus pais em um vilarejo afastado do centro urbano e conhece a jovem Letícia. Em uma tarde no quarto, elas conversam, escutam canções, compartilham leituras e momentos de intimidade, guiados pelas músicas da banda Musa Híbrida.” Ou seja, Laís nem mesmo mora naquela casa.