Sinopse: Antigamente, os brancos não existiam e nós vivíamos caçando com os nossos espíritos yãmĩyxop. Mas os brancos vieram, derrubaram as matas, secaram os rios e espantaram os bichos para longe. Hoje, as nossas árvores compridas acabaram, os brancos nos cercaram e a nossa terra é pequenininha. Mas os nossos yãmĩyxop são muito fortes e nos ensinaram as histórias e os cantos dos antigos que andaram por aqui.
Direção: Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu, Roberto Romero
Título Original: Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa! (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 10min
País: Brasil
Preconceito, Palavra Branca
Quando “Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!” foi apresentado como parte da Mostra Olhos Livres da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, muita gente ficou curiosa para saber como seria o trabalho da dupla Isael Maxakali e Sueli Maxakali, premiada ano passado no festival por “Yãmĩhex: As Mulheres-Espírito” (2019) e os diretores Carolina Canguçu e Roberto Romero. Mal sabíamos que encontraríamos uma obra que, mesmo não se dissociando da imersão pura do longa-metragem anterior, potencializa a experiência com recados diretos a uma sociedade que soa como irrecuperável.
A nova dupla que se une aos representantes maxakalis já haviam produzido o filme anterior – e participado da difícil montagem ao lado de Luisa Lanna. Aquele era um exemplo de que a presença nas filmagens trariam um ganho à ilha de edição. No nosso texto, quando assistimos Mulheres-Espírito durante a Mostra Tiradentes | SP de 2020, lamentamos a dificuldade de mergulharmos em uma obra que demanda a concentração e o encantamento a qual uma sala de cinema ainda não foi superada. Carolina e Roberto, parte da Filmes de Quintal e do forumdoc.bh são acadêmicos e documentaristas vinculados à Comunicação Social.
O prólogo de “Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!” já nos traz uma contextualização sintética e forte. Usando imagens de arquivo, fotografias e ilustrações dos séculos XIX e XX. Leva o espectador a Teófilo Otoni, onde nos reuniremos aos maxakalis. Contudo, a narração dos representantes indígenas sacramentam o início do fim no espaço-tempo: Porto Seguro, 1500. O filme, então, se sustentará em duas frentes muito potentes. A primeira são experiências imersivas menores (em duração) do que o bloco único do longa-metragem selecionado no ano passado. Ao contrário da recepção e do contato espiritual, aqui há um foco nos rituais sobre a morte, a passagem e o entendimento do espírito como um legado que nunca se ausentará.
Curioso que nos primeiros momentos do longa-metragem há uma sequência em que um grupo cava a terra com as mãos e relacionam esta à maternidade, a construção de pensamento que – uma vez absorvidas por aquela coletividade – os fará repetir sempre que for possível a expressão que dá nome ao filme. Isso ocorre no dia seguinte à nossa entrevista com Pedro Diógenes, diretor de “Pajeú” (presente em Tiradentes) e diretor assistente de “Ultima Cidade“, que assistimos no 30º Cine Ceará. Nesse último, chamava também a atenção essa relação da terra como representação ancestral e como marca dos múltiplos genocídios em território latino-americano – algo mencionado na conversa. Ao passo em que, a ficcionalidade permitiria que o sangue fosse adicionado enquanto elemento estético, como ocorreu, por exemplo, em “King Kong en Assunción” (2019) de Camilo Cavalcante – outra produção que traz terra e morte como premissas.
Podemos, então, denotar, que o documentário é um encontro reconstrutor. Os diretores brancos não se alinham, se aliam. Há uma dinâmica que contempla as possibilidades que captações de imagens aéreas e outras ferramentas permitem. Se já não bastasse esse mergulho mais contextualizado, que torna “Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!” igualmente magnífico por motivos suplementares, o filme ainda se encontra enquanto discurso que se ergue de forma crescente na segunda metade.
É quando o público vê a imersão anteriormente proposta ser mitigada para que a obra comece a reconstituir o genocídio em curso. A carga histórica e a ancestralidade não chegam a ficar em segundo plano, mas a atualização dos fatos traz a investigação e a denúncia para junto dessas representações. Nisso, como poderíamos esperar em uma ascensão fascista crescente no país, um fazendeiro não se esquiva em mostrar a cara para cuspir defesa de propriedade a partir do sumiço de lâmpadas, quase desenvolvendo a tese de seu direito de matar. A impunidade é desenhada pelos depoentes que lembram que o agronegócio, a magistratura e a classe política são apenas gavetas do mesmo armário de privilegiados que se articulam para não perder absolutamente nada.
O homem branco mata muito – e com muita facilidade. Não há descanso enquanto ainda houver espaço na planilha de vítimas. A morte enquanto projeto: muitos avisaram e estamos assistindo em larga escala enquanto sonhamos com seringas e agulhas. Quando escrevemos sobre “Tupinambás – Vozes da Caminhada” na cobertura da Mostra Taguatinga de 2020 lembramos da importância do julgamento do Marco Temporal de 1988 – uma decisão que a formação atual do STF sentou na pasta e deixa os povos originários sob o risco de ver uma reformulação da Corte (por aposentadorias, golpe democrático ou coisa pior) destruir o pouco que resta a partir de novas demarcações de terra.
As cercas também estão em “Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!, colocadas com a mesma má vontade com a qual se buscou na internet um vetor de um apache para colocar na placa que avisa a quem chega (turistas?) que ali é uma área indígena. Um simbolismo enviesado, de uma sociedade de intenções carregadas de hipocrisia. Nessa, que é uma das grandes cenas do filme, chega aos nossos ouvidos algumas das palavras que os maxakalis replicam em português: preconceito. Intraduzível para um povo ao qual sempre foi negado tudo – mesmo o que já era seu. Expressão tipicamente branca. Têm quem mate e tem quem se cale. Tem Carolina e Roberto, falando através de imagens. E tem Isael e Sueli, querendo estancar estatísticas pela arte.
Clique aqui e acesse os filmes da Mostra Tiradentes (até 30.01)