24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 6
Multipolaridade
Dentro da Mostra Panorama na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a Sessão 6 se inicia com uma produção que provoca discussões sobre formas híbridas de se contar histórias e, aos poucos, vai caminhando para formatos que se baseiam em gêneros e formas de condução bem definidas. De Helena Frade a Ricardo Alves Jr., o documental e o ficcional se apresentam quase como abordagens medidas por intensidade – e não mais como elementos que notamos ao misturar água e azeite. Respeitar essa quebra de polaridade do audiovisual se tornou fundamental para viajar pelas possibilidades da contemporaneidade. Mesmo assim, sempre há espaço para revisitar algumas tradições.
Quando falamos do hibridismo em vários aspectos de “Vida Dentro de um Melão“, de Helena Frade, imaginávamos que a obra transitaria por vários festivais. Essa característica, que pluraliza dentro do curta-metragem narrativa, linguagens e possibilidade estéticas, não o torna um simples exercício da jovem cineasta. Trata-se de uma construção muito sensível, que passa por nós pela quarta vez.
Em 2020, assistimos ao filme no FestCiMM (onde analisamos com muita brevidade nesse link), no Festival Taguatinga (em uma sessão mais curta, de uma mostra que se espalhou por várias semanas e pudemos nos debruçar mais nesse link) e no Ecrã. Quando confirmou a presença da produção na Mostra Panorama em Tiradentes, a Apostila de Cinema precisava conversar com a realizadora.
Helena, então, se mostrou ainda mais consciente e madura – mesmo com todas as pistas que “Vida Dentro de um Melão” deixa. Assim como outros nomes de uma geração que não chega a romper com o audiovisual tradicional – visto que propõe uma outra coisa que não anula representações anteriores – ela tem uma fala a favor da unidade. Não apenas das artes, mas das interações humanas e nossa com o mundo. Ao chegar a essa conclusão, ela não vê limites nas formas de se expressar.
Por isso, Helena Frade ultrapassa o rótulo de cineasta. É artista visual, é acadêmica, é também uma estudiosa da sociedade e de indivíduos. Sendo assim, o resultado de sua criação também será muita coisa, que seguimos definindo até não fazer sentido fazê-lo.
Assista à entrevista com Helena Frade, de “Vida Dentro de um Melão”:
A ficcionalidade a partir do naturalismo das representações faz de “Choveu Há Pouco na Montanha Deserta“, de Rei Souza, um exemplar que – mantendo uma linguagem tradicional e ao mesmo tempo inquietante – consegue abordar as dificuldades de reinserção na sociedade como um debate atravessado na obra. O curta-metragem se inicia com um jovem que está de volta à cidade após uma temporada na chácara de seu tio. Tomando um café, ele conta pelo que passou naquela temporada.
O cineasta flerta com o perturbador a partir de uma trilha sonora que simula um disco (ou qualquer mídia física) de um lo-fi com imperfeições. Notas de uma canção que pula, se adianta para um caminho que o ouvinte não quer chegar. Nessa forma de mergulharmos nessa realidade do protagonista, que não consegue dar continuidade a processos, Rei adiciona o experimentalismo de frames não sequenciais. Até que chegamos ao real motivo daquele afastamento do personagem da cidade: os desafios de uma sociedade que não garante uma reinserção digna a ex-integrantes do sistema prisional brasileiro – principalmente a um jovem negro, mesmo com os antecedentes não seja de maior gravidade.
O recomeço (ou o adiamento do recomeço), um mote parecido com o de “Arábia” (2017), de Affonso Uchôa, mas que aqui deixa em aberto até quando a fuga da realidade será permitida. A composição de Rei Souza, que traz uma narrativa que ao mesmo tempo vai se revelando e metaforizando (até entregar “Abraço Frágil”, canção de Melk – rapper que viveu experiência parecida em sua trajetória), é mais um trabalho maduro dentro das produções em curta-metragem do festival.
“Caminhos Encobertos” segue o caminho documental para retomar uma discussão sobre as honrarias que circundam determinadas figuras de nossa história. Beatriz Macruz e Maria Clara Guiral nos levam ao Pico do Jaraguá, onde dois jovens que compõem a liderança Guarani Mbya dividem suas percepções enquanto as cineastas registram algumas formas de debate e mobilização.
Chama a atenção a cena do olhar para a Rodovia dos Bandeirantes e ter em seu nome essa marca a partir do chamamento. A transferência geracional da perseguição e das dores já seriam o suficiente para que representantes dos povos originários refletissem o incômodo. Todavia, mais do que desejo de reparação histórica, há uma agressão que – além de permanecer com as políticas de demarcações de terra ineficientes e danosas – se reforça toda vez que a sociedade lhe diz que genocidas são dignos de homenagens.
A relação com o território é outro destaque do curta-metragem. Essa levada espiritual para que eles estejam na terra é sinalizada pela montagem logo no início. Todavia, as duas lideranças nos lembra que aldeia é tudo – cidade é o que unilateral e violentamente se ergueu em cima dela. Tratar a aldeia enquanto espaço deslocado (e não como território originário) é ainda um dos grandes desafios dos povos indígenas. Por isso, mesmo que o espírito peça para que eles estejam ali, a ocupação e a transição pela cidade também é fundamental.
Só que essa ocupação surge no filme enquanto discurso. Guiado pelos sonhos, os Guaranis nos mostram uma cartografia feita, literalmente, na terra. Em uma realidade onde bandeirante é uma palavra socialmente aceita, que vai de nome de estrada a canal de televisão, eles precisam agir em duas frentes: lutar pela justiça social e contra o apagamento para fora, enquanto resgatam, mapeiam e reconstituem sua própria história internamente.
Encerrando a sessão, o curta-metragem “Vitória” usa a ficcionalidade para tratar da precarização do trabalho. O cenário escolhido por Ricardo Alves Jr. não poderia ser melhor. Uma fábrica, dentro de uma escala industrial, não deixa de trazer uma vinculação com um passado bem distante, onde os trabalhadores – assim descritos depois que a Europa aboliu a servidão – tinham direito apenas a não ter direitos.
Quase como se voltássemos ao ponto da revolução industrial, hoje a classe opressora aponta a responsabilidade por qualquer mazela da sociedade ao excesso de privilégios… dos pobres. Com a meritocracia gritando nos nossos ouvidos, um dos livros fundamentais para entender a ideologia bolsonarista é “Direitos Máximos, Deveres Mínimos”. Nele, o autor Bruno Garschagen faz uma narrativa bipolar. Na primeira metade ataca privilégios de ricos e funcionários públicos de carreira, como um adicional ao já abastado salário. Um aceno simpático para demonstrar sua real intenção: atacar as pequenas conquistas das minorias do país.
Há quem diga que o filme de Alves Jr. didatiza a experiência ao transformar a construção narrativa baseada na inquietude e no incômodo que parecia não se materializar da protagonista. Traz a atuação política para o centro, não em forma de alegoria, mas totalmente coerente com o drama proposto. Uma personagem que elucida a mistura de temores que geram seu pico de pressão arterial. O emprego é herói e vilão para a classe trabalhadora, por isso Vitória segue fumando seu cigarro e voltando ao seu posto.
Ou seja, tornar sua narrativa um discurso tem seu mérito. Há uma beleza no audiovisual brasileiro atual, de criar provocações sobre uma infinidade de assuntos. Porém, ir além da provocação também é bom. Senão, nós enquanto sociedade viveremos em um dramático compasso de espera enquanto todos os nossos direitos escorrem pelo ralo – sem qualquer poética nessa Derrota.
Ficha Técnica da Mostra Panorama | Sessão 6
Vida Dentro de um Melão (Helena Frade, 18′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Uma garota filma o seu redor. Fantasiada de bicho, o desconhecido te assopra quando o coração quer voar.
Choveu Há Pouco na Montanha Deserta (Rei Souza, 21′ – Brasil, 2020)
Sinopse: O dia de tentar acertar as contas com o passado chega e, sem se dar conta, Henrique entra em rota de colisão consigo mesmo.
Caminhos Encobertos (Beatriz Macruz e Maria Clara Guiral, 26′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Karai Mirim e Karai Jekupe são lideranças Guarani Mbya que moram na Terra Indígena Jaraguá em São Paulo. Enquanto sobem o Pico do Jaraguá, eles contam parte da história Guarani da metrópole.
Vitória (Ricardo Alves Jr., 14′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Vitória é uma entre muitas operárias da fábrica de tecidos. Num dia de trabalho, ela aventa a possibilidade de agir coletivamente e transformar a ordem vigente.
Ouça Abraço Frágil, de Melk:
Clique aqui e acesse os filmes da Mostra Tiradentes (até 30.01)
Clique aqui e acesse os textos de nossa cobertura especial
24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 6