24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 5

24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 5

24ª Mostra Tiradentes Logo

24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 5

Curta Milton Freire, um Grito Além da História Victor Abreu
Milton Freire, um Grito Além da História (Victor Abreu, 2020)

Não Há Fim

A confluência entre documental e ficcional, entre a realidade e a imaginação, entre os caminhos que nossa mente faz para ignorar os fatos… O encontro dos cinco curtas-metragens da quinta série de produções da Mostra Panorama é quase um manual de possíveis formas de se construir narrativas. Bem diferentes entre si, mas complementares se imaginarmos que quanto mais discursos chegarem, maior será a contribuição ao debate.

Milton Freire, um Grito Além da História“, produzido pela Neblina Filmes e dirigido por Victor Abreu, resgata a história de um dos principais militantes a favor da dignidade do tratamento psiquiátrico no país. Uma questão traziza enquanto ficcionalidade na cinebiografia “Nise: O Coração da Loucura” (2015), por Roberto Berliner. O protagonista aqui foi um dos pacientes da doutora, pioneira na terapia ocupacional. É um documentário duro, em que Milton retorna a locais de suas internações. Suas reconstituições verbalizadas, em uma montagem que capta aqueles ambientes degradados, dá ao curta-metragem um ar de performance de medo. É a confirmação de que os traumas ali vividos não têm como serem apagados.

Freire ainda se coloca em espaços que também provocam outros sufocamentos dentro da cidade do Rio de Janeiro, como o tenebroso viaduto que leva à rodoviária Novo Rio. Porém, o que fica no espectador são as paredes escritas, os gritos de socorro eternizados. A TV Zero, gerida por Berliner, deixa essa contribuição complementar ao filme estrelado por Glória Pires. Milton não está mais entre nós, faleceu em 2019. Mesmo ano em que a volta ao poder de um grupo político desumano põe em risco essas representações enquanto registro histórico – corre-se sério risco de voltar a lê-las enquanto realidade estabelecida.

Curta Você já Tentou Olhar nos meus Olhos? Tiago Felipe
Você já Tentou Olhar nos meus Olhos? (Tiago Felipe, 2020)

Tiago Felipe é mais um jovem realizador que alia a fotografia e a corporalidade para fazer de si a narrativa de sua obra. “Você já Tentou Olhar nos Meus Olhos?” trata da objetificação do corpo negro a partir de fotografias. De início, carregadas de impessoalidade. São os pés que vão se descalçando, trazendo ao público o processo de exploração da carne.

Com pouco mais de três minutos, é uma obra que ultrapassa (e muito) o simples exercício de montagem. O cineasta consegue entregar um discurso potencializado, sem uma verbalização que a didatiza. Ficar só com as imagens já seria o suficiente para registrar o poder do curta-metragem. Porém, o que as molda ainda é a fala do corpo-personagem. O que Rodrigo Ribeiro fez em “A Morte Branca do Feiticeiro Negro” (2020), em um processo hermético de manter essa impessoalidade com a frieza das palavras que surgem na tela, Tiago Felipe faz ao contrário: se põe também como voz, fazendo dos olhos a forma pela qual apresenta sua identidade.

Não há íris que se repita e não há discurso que não mereça ser continuamente escutado.

Curta A Pontualidade dos Tubarões Raysa Prado Panorama | Sessão 5
A Pontualidade dos Tubarões (Raysa Prado, 2020)

Chegando à ficcionalidade enquanto origem da narrativa, “A Pontualidade dos Tubarões“. Raysa Prado inicia sua história com uma menção a Gabriel García Marquez, o que já é um grande indicativo de qualidade. O que o curta-metragem faz é retomar pontos da precarização do emprego, só de uma forma mais densa e mais dramática do que um dos grandes destaques deste ano da Mostra Aurora, “Eu, Empresa” (2021). Um dos representantes da Paraíba na Mostra Tiradentes conta a história de um jovem e suas diversas formas de sobrevivência.

Ele é seu próprio patrão? Pois não. Só que também é seu agente, vendedor, entregador, gerente de marketing. As atividades desempenhadas são, por vezes, indecifráveis. O protagonista João é reflexo de um tempo em que ser apenas uma coisa nunca é o suficiente. De bicicleta ele cola anúncios nos postes – e a cineasta revelará que são vários e dos mais diversos ofícios.

Há algo muito curioso no curta-metragem, que nos deixa muito apreensivos. A ausência de outra visão torna tudo mais confuso e desolador. Vivemos a expectativa do personagem, naquela casa-escritório, à espera de telefonemas que nunca saberemos sobre o que e de quem se trata. Só entendemos que uma das ligações é indesejada. Somos movidos pela curiosidade, querendo que ele quebra essa distância, essa parede que o audiovisual coloca como regra. Mesmo sabendo que nos arrependeríamos de fazer perguntas, pois João é uma das respostas da nossa sociedade falida.

24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 5

Curta Babelon Leon Barbero Panorama | Sessão 5
Babelon (Leon Barbero, 2020)

De García Marquez a Lucien Sfez, chegamos assim em “Babelon“, de Leon Barbero. Aqui há um exercício de materializar as propostas desse cientista social tunisiano e a busca por um mundo menos dependente da tecnologia. É quase como revistar uma matrix sem saber se há um domínio externo ou se vivemos em uma mente perturbada. Uma narrativa que começa estilizada, nos fazendo lembrar o clássico sobre esse tipo de dominação, “Eles Vivem” (1988), de John Carpenter.

Essa roupagem dada pelo cineasta é reflexo de um momento em que passamos da crise dos meios de comunicação para uma crise da comunicação lato sensu. Carpenter segue atual mais de trinta anos de seu lançamento, mas o nível de propagação do caos encontrou a futurologia por ele proposta – e da pior maneira possível, já que naturalizamos esse processo, nos contentando com alguns joguinhos de mexer bolinhas gratuitos no aparelho de telefone.

Essa dúvida sobre o que é falso e o que é verdadeiro paira em nossa mente de forma constante. Refletir sobre isso ganha ares sufocantes (com a devida licença poética) e o protagonista do curta-metragem passa por alguns dilemas que, no ritmo frenético do nosso cotidiano, nos passa desapercebidos. Quantos de nós não trocamos um código de verificação, a princípio ininteligível? Quase como um atestado de desumanidade. Aliás, ter dúvidas sobre a própria humanidade é uma das consequências desse ambiente em que vivemos. Em “Babelon” lembramos que ouvimos mentiras desde criança, então esse processo da dúvida também é natural. O falso enquanto risco para o receptor e como poderoso conteúdo a ser produzido pelo emissor.

Barbero tem um apoio de atuação de luxo, o cineasta Caetano Gotardo. Uma história que põe em dúvida até mesmo a verdade enquanto libertação. Afinal, é um conceito bíblico, não é verdade? Mimetiza o cosplay enquanto chance de assumir o falso enquanto narrativa e ainda nos faz sonhar com um futuro ataque de baratas. Será que elas terão paciência para guardar a nossa extinção?

Curta Enterrado no Quintal Diego Bauer
Enterrado no Quintal (Diego Bauer, 2020)

Encerrando a sessão da Mostra Panorama, “Enterrado no Quintal” é uma história tarantinesca de vingança muito bem construída. As fotografias das festas infantis da protagonista começa a dar peso em um conto muito forte sobre uma mulher que desenterra uma arma que guardou no quintal quando criança para matar o pai em respeito à memória da mãe.

Diego Bauer passou por alguns festivais em 2018 – incluindo a 10ª Semana de Cinema – com seu curta-metragem “Obeso Mórbido”, em que ele se colocava enquanto objeto da obra (codireção de Ricardo Manjaro). Aqui ele adapta seu próprio conto, trazendo uma vertente mais literária em sua forma de apresentar uma narrativa. Além de envolvente, “Enterrado no Quintal” dá peso a questões que por vezes ficam de fora quando a vendeta é o mote da trama.

Uma delas é a confusão entre o desejo de extravasar a raiva e o justiçamento irreversível, mesmo que com nobres motivações. A forma de se desapontar com os planos, também torna o filme mais realista do que a referência citada no início. A nossa cobertura da Panorama chega ao fim com mais um nome de realizador que nos deixa curiosos pelos novos projetos, por trazer gêneros sem se prender às convenções – e ainda registrar todas as formas da sociedade deturpar justiça e misericórdia usando apenas um Jesus escrito em neon.


Ficha Técnica Mostra Panorama | Sessão 5

Milton Freire, um Grito Além da História (Victor Abreu, 20′ – Brasil 2020)
Sinopse: Em um relato poético, Milton Freire relembra duas visões que o guiaram em sua reconstrução subjetiva, vividas em um período de crises e internações em hospitais psiquiátricos.
Você já Tentou Olhar nos meus Olhos? (Tiago Felipe, 4′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Quem dita o que um corpo negro necessita? Você já tentou olhar nos meus olhos?
A Pontualidade dos Tubarões (Raysa Prado, 16′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Atendendo ligações de pessoas diferentes todos os dias, João passa minuciosamente as horas dentro de seu apartamento. Em meio a sua rotina, tudo se altera pontualmente às cinco da tarde.
Babelon (Leon Barbero, 13′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Quando um homem comum percebe a falsidade no emaranhado de telas e transmissões, uma misteriosa voz digital surge para expor quais segredos se escondem por detrás das falsas verdades.
Enterrado no Quintal (Diego Bauer, 15′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Quando mais jovem, Isabela enterrou um revólver no quintal de casa, com uma promessa de se vingar do seu padrasto, que agredia a sua mãe. Anos depois ela desenterra a arma e vai em busca de sua vingança.

Clique aqui e acesse os filmes da Mostra Tiradentes (até 30.01)

Clique aqui e acesse os textos de nossa cobertura especial

24ª Mostra Tiradentes | Mostra Panorama | Sessão 5

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *