24ª Mostra Tiradentes | Mostra Formação | Série 2

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Curta Vander Barbara Carmo
Vander (Barbara Carmo, 2020)

Laços

A Mostra Formação foi mais uma forma da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes dizer o quanto o audiovisual brasileiro possui novas gerações que surgem como um leque de grandes vozes, discursos e representações – usando o Cinema como ferramenta e novo como fim em si mesmo.

O que dizer do curta-metragem de apenas dois minutos que abre a segunda sessão? “Vander” é uma reunião de potente filme de apenas dois minutos, maneira de Barbara Carmo se apresentar enquanto jovem realizadora preta e uma forma pessoal e contundente de tratar do incessante genocídio negro no Brasil. São segundos em que ela utiliza apenas da identidade de seu pai, um homem respeitável que saiu um dia sem aquele pedaço de papel no bolso.

Assistido no último dia de festival, em um emaranhado de produções que se sucederam em maratona na tentativa de prestigiar todos os filmes, “Vander” me fez parar. Assim como me fez parar dois dias depois, antes de retomar a escrita desses textos críticas, a notícia de mais um brutal e covarde assassinato. Vander também é Marcelo de Almeida Silva, funcionário da Comlurb de 38 anos. Abriram sua mochila, furtaram ardilosamente os seus documentos e as suas identidades (incluindo o uniforme que provava seu deslocamento para o trabalho). É a violência perpetuada contra pessoas com nome, pai, mãe, filhos, origem. Cada dia a lista de vítimas aumenta. Nós paramos. E seguimos. Mas a fala de Barbara fica.

Curta Noções de Casa Giulia Maria Reis Formação | Série 2
Noções de Casa (Giulia Maria Reis, 2020)

Noções da Casa” também toca o espectador carioca ao nos lembrar a escola de cinema Darcy Ribeiro, despejada de seu prédio onde encontrava-se baseada há algumas décadas por pura maldade do poder público (nem fale mais a pena gastar letra maiúscula com isso) – em degradação dos Correios enquanto empresa para vendê-la a preço de banana a algum empresário que vocifera liberalismo em cada esquina.

A realizadora Giulia Maria Reis, que não tem nada a ver com isso (mas tem), usa uma montagem cada vez sedimentada de fotografias de arquivo e objetos de uso pessoal para seguir na sessão falando de família. Se quando falamos da sessão 2 da Mostra Panorama (leia aqui o texto) lembramos do conceito de casa enquanto local de pertencimento, que ultrapassa a materialidade, aqui há muita materialidade.

Não apenas a morada enquanto território físico, é claro, mas a proposta de dobra no tempo que a cineasta nos faz é uma maneira de todos nós revisitarmos o que deixamos para trás quando superamos ou nos afastamos de determinados espaços. Também na Mostra Panorama, mas na sessão 4 (leia aqui o texto), tratamos desses discursos – muitos (para não dizer todos) de realizadoras mulheres – que unem essa busca por um lugar onde, de fato, há segurança, com essa projeção de destruição de relações e laços familiares de nossa realidade enquanto sociedade partida. Não esquecendo que há quem lamente a inviabilidade temporária da Darcy Ribeiro, uma das casas de Giulia, como algo positivo.

Curta Comboio pra Lua Rebeca Francoff
Comboio pra Lua (Rebeca Francoff, 2020)

Seguindo uma sessão em que jovens realizadores falam dos mais diversos espaços e diferentes relações enquanto locais de pertencimento e laços de afeto, “Comboio pra Lua“, de Rebeca Francoff, tem uma curiosa abordagem inaugural, enquanto linguagem. Ainda são poucas as obras que mimetizam a construção tiktoker enquanto possibilidade narrativa – confesso que achei que me depararia com isso mais vezes em Tiradentes esse ano.

Essa abordagem que transcende a montagem desktop é apenas um exercício, o filme de Rebeca é mais tradicional do que aparenta inicialmente. Isso não deixa de o torná-lo mais uma ótimo curta-metragem, que toca fundo sobre a inserção em um novo território, em que a necessidade de formatar novas relações é fundamental para a sobrevivência. Contudo, “Comboio pra Lua” também é um pouco fruto do tempo em que vivemos, em que as manifestações artísticas seguem em franca perseguição do Brasil. Há uma roupagem narrativa que nos lembra algo próximo de um momento de exílio. É sentimental, mas ao mesmo tempo incômodo, de certa maneira. Estar lá passa por não estar aqui.

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Curta Para Todes Victor Hugo, Samara Garcia e equipe Formação | Série 2
Para Todes (Victor Hugo, Samara Garcia e equipe, 2020)

A sessão segue com o divertido “Para Todes“, uma obra coletiva de alunos da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, capitaneados por Victor Hugo e Samara Garcia. Usando bem a linguagem documental, registra a organização de um grupo de adolescentes, em que as meninas questionam os motivos de não haver um jogo de futebol que não as segregasse dos meninos. Uma mensagem de afirmação feminina, em uma narrativa em que se observa a liberdade no desempenho do projeto.

Estamos diante uma captação genuína de imagens, até mais esclarecedora do que o francês “Um Filme Dramático“, assistido ano passado no 9º Olhar de Cinema. Claro que o tamanho da produção (tanto em orçamento, quanto em duração) é incomparável, mas o espaço escolar tão pouco explorado, que surge enquanto propaganda governamental quase sempre higienizado, ganha força em “Para Todes” – no qual, esperamos, futuros cineastas e trabalhadores do audiovisual estejam inseridos por entre aqueles créditos.

Curta A Verdade Sai de seu Poço para Envergonhar a Humanidade Matheus Strelow
A Verdade Sai de seu Poço para Envergonhar a Humanidade (Matheus Strelow, 2020)

Encerrando uma sessão carregada de formas e possibilidades, em que a linha-mestra é apenas (e não apenas) o futuro do cinema do país, “A Verdade Sai de seu Poço para Envergonhar a Humanidade” é a Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) em Tiradentes. Ao mesmo tempo que reúne de forma sintética muitos dos tempos pelos quais tratamos nos outros filmes: família, casa, espaços de pertencimento e laços afetivos, também é um curioso conto em que o uso do insólito é muito bem delineado.

Da fotografia em preto e branco à obsessão por Walter Benjamin, é inegável que o cineasta Matheus Strelow faz uma obra referencial, pinçando elementos da formação de seu olhar para construir uma história a partir disso. E que bom que ele faz isso, pois estamos diante de mais bom curta-metragem que usa o terror psicológico e seus elementos de gênero muito bem.

Ou seja, não estamos diante de uma geração nem de uma tendência. São várias formas de se fazer audiovisual no Brasil hoje – e tentar compartimentá-los é inútil, ofensivo até. Fundamental, portanto, é prestigiar o maior número possível de vozes e registrá-las, pois temos certezas que no meio dessas mal traçadas impressões estamos apenas mencionado o início de grandes carreiras.


Ficha Técnica Mostra Formação | Série 2

Vander (Barbara Carmo, 2′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Uma filha tenta encontrar a conexão perdida com seu pai através da única foto que possui.
Noções de Casa (Giulia Maria Reis, 12′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Certas datas comemorativas há um tempo mudaram de significado. Uma das casas se transforma. Ana e Luiza, em meio a mergulhos, buscam reflexões sobre as formas que a casa pode se apresentar em meio as dobras do tempo. Um ritual de despedida da primeira infância e proposta de reconciliação com os que vieram antes.
Comboio pra Lua (Rebeca Francoff, 23′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Pedro e Rebeca são amigos e estudam em Portugal. Rebeca é brasileira e Pedro português. Durante a convivência, os dois jovens lidam com as sensações de não pertencimento, a solidão e os relacionamentos à distância.
Para Todes (Victor Hugo, Samara Garcia e equipe, 13′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Futebol é para todes? Os alunes da Escola Municipal Adalgisa Nery, localizada no bairro de Santa Cruz, Rio de Janeiro, embarcam numa aventura para mostrar ao mundo que é necessário romper com muros visíveis e invisíveis. Estes, acabam impossibilitando na maior parte das vezes pessoas com necessidades especiais, LGBT’S, mulheres e entre outros grupos de participarem de partidas de futebol. No linguajar deles, mesmo que a partida seja à brinca ou a vera, há uma intensa disputa para saber o vencedor.
A Verdade Sai de seu Poço para Envergonhar a Humanidade (Matheus Strelow, 22′ – Brasil, 2020)
Sinopse: Natália é uma universitária que mora com os pais, na mesma casa onde cresceu. Sua irmã mais velha chega de visita, trazendo consigo memórias de infância que Natália não lembra. As madrugadas insones em que vasculha seus arquivos parecem desencadear acontecimentos estranhos, que podem ameaçar sua segurança.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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