A Cor Branca

Cor Branca

Sinopse: A pausa e a calma da Cor Branca mostrada nas imagens são realmente um grito desesperado de angústia e alienação que não encontra maneira de se manifestar. Uma câmera segue a quietude da vida cotidiana de Antônia que, para sua sobrevivência, trabalha incansavelmente para uma empresa de mineração, o desamparo diante de suas circunstâncias, a humilhação constante e a dificuldade de ser mulher em um ambiente como esse. Uma ficção que pode muito bem ser, devido à sua história, sua linguagem e a passividade com que é filmada, um interessante documentário de observação.
Direção: Afonso Nunes
Título Original: A Cor Branca (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 42min
País: Brasil

A Cor Branca Imagem

A Quietude Barulhenta

No imaginário audiovisual brasileiro, Minas Gerais como forma de expressão começa a ganhar a mesma carga do cinema recifense do início do século XX. Um conjunto de produções que aplicam, na tendência de desapego à narrativa, o toque introspectivo que a região costuma marcar seus habitantes e suas ações. O mais novo exemplo é “A Cor Branca“, longa-metragem que marca a estreia de Afonso Nunes nessa linguagem. Em seu canal no YouTube é possível assistir aos curtas-metragens “A Idade do Homem” (2004), “Sentinela” (2007) e “Desvio” (2019) e até o final do mês de agosto de 2020, esta obra – que estreou na televisão pela Rede Minas em 31 de julho, ficará também disponível – deixaremos ao final do texto o acesso ao vídeo.

Desde a sinopse, oficializada na programação da Mostra São Paulo de 2019 – em que o filme foi selecionado – o cineasta deixa claro que estamos diante de um processo de observação. Nunes estica ao máximo esse conceito e, como se vale cada vez mais as criações híbridas de ficcionalidade e documental, perpassa as questões na complexidade das imagens (forma) abdicando de verbalizações contundentes (conteúdo). Com isso, a produção se permite um objetivo urgente: a total apreensão do espectador, que precisa subtrair dali suas provocações.

Esse cinema de auto entendimento tem ocupado bastante espaço aqui na Apostila de Cinema. Mesmo aceitando que parte do público – aquele que procura o tradicional em uma obra – ventilará adjetivos como “difícil” e “parado” para filmes como “A Cor Branca”, queremos acreditar (e sempre trouxemos os motivos) que esse preconceito é cada vez menor, com um constante aumento da adesão às criações tão interessantes e belas como o longa-metragem de Afonso Nunes.

Apontar as semelhanças com outras produções tem objetivos meramente contextualizantes e enaltecedores. O xará do cineasta, Affonso Uchôa, por exemplo, também usa a utopia da ressocialização do sistema carcerário como mote das obras, por exemplo. É com uma carta para um amigo do presídio de um personagem que acaba de receber liberdade provisória que tem início “A Vizinhança do Tigre” (2014), por exemplo. Já o Cristiano de “Arábia” (2017), antes de percorrer Minas Gerais, tenta recomeçar a vida no interior de São Paulo, entendendo que a prisão é uma marca que o acompanhará.

Já as escolhas estéticas aproximam a obra da imobilidade de “Temporada” (2018) – assim como o protagonismo feminino. Sendo assim, não é exagero entender “A Cor Branca” como parte desse artesanato mineiro do audiovisual. Aliás, o próprio vocábulo artesão já se relaciona a quem controla seus meios de produção – e antes que o Cinema Sem Partido me denuncie ao Mário Frias, é bom lembrar que esse é um conceito que existiu apenas como contraponto à Revolução Industrial. Pois bem, é curioso ver e entender esses realizadores do Cinema Brasileiro dos últimos anos como detentores das formas, porque faz todo o sentido – até na quebra do binômino ficcional x documental, como já dissemos. Essa maneira de usar moradores da localidade como atores e cenários apenas naturais é uma forma de expressão que dificilmente deixará de ser praticada a médio prazo.

Há uma construção de imagens que aproxima o trabalho de Afonso Nunes do que Maya Darin em “A Febre” (2019), vencedor do Festival de Brasília do ano passado. Essa manutenção de enquadramento, deixando-o estático, é a escolha de de André Novais Oliveira em sua obra citada, mas lá é como uma comunhão de percepções da protagonista Juliana (Grace Passô). Aqui se pensa de forma mais próxima de Darin porque a existência humana não é fator preponderante para a manutenção da imagem. Isso rompe o protagonismo pensado, dentro da estrutura de cada cena individualmente. Em uma sequência, há um médico com sotaque espanhol atendendo uma senhora. Ele não aparece, mas fica a impressão de ser referência aos bravos cubanos que cumpriram importante missão no programa Mais Médicos e foram convidados a se retirarem do Brasil antes mesmo da posse de Jair Bolsonaro. A personagem da cena é a cadeira, assim como em “A Febre” por vezes é um cacho de bananas ou um armário, como dissemos na nossa crítica.

Aquela cadeira de Nunes é o local onde dezenas de pessoas diariamente recebem atendimento preventivo e conseguem obter um fragmento de dignidade relacionada à saúde – ainda pública e universal. Desta maneira, o diretor vai amplificando o caráter político de “A Cor Branca” a partir de suas escolhas. Isso liberta a captação de imagens da mesma maneira que a narrativa, livre desde o princípio. Sendo assim, na beira da estrada – onde algumas das mais belas cenas do filme ganham forma – ele pode acompanhar o caminhar de outra personagem até um ponto e deixá-la seguir. Ao se aproximar do documental, somos levados a cenários reais, onde nada é pensado – mas tudo está ali.

Com o tempo que a montagem nos dá, essa ideia de realidade se materializa na mesma proporção com a qual nos aprofundamos na análise do olhar. Na cozinha da família há o filtro de barro, o armário da loja popular de departamentos, a relação do filho com a avó, as panelas de alumínio – todas passando por mais um dia de suas existências, sem a pressão da função ficcional, mas tão imortalizadas quanto agora que estamos a vê-las. Nesse mesmo momento, Nunes capta no fundo da imagem a interação entre mãe e filho. Como se a profundidade de campo fosse um portal da vida real.

Assim ele traz um novo começo, com novos créditos e tudo. “A Cor Branca“, então, passa a falar do barulho com o qual moradores de proximidades de uma mineradora precisam conviver. Só que estamos diante de uma obra que se vale da quietude, mesmo com um leque de personagens afetados pelo som. O grande problema da limitação que o barulho traz é não ter a plenitude da existência – já que nossas escolhas ficam afetadas. Então, Afonso Nunes insere algo próximo de um experimento dentro da sua obra.

O terço final é inaugurado em uma sequência onde ouvimos o discurso pós-golpe antidemocrático, lido por Dilma Rousseff assim que o Senado Federal aprovou seu impeachment. Em paralelo – usando uma profundidade de campo um pouco menor – outro diálogo entre mãe e filho. Desta vez não conseguimos captar tudo o que está sendo dito. Aliás, o espectador que se prender ao discurso da Presidenta, sequer perceberá o que ocorre ali. No primeiro plano, duas senhoras nos mostram como a política se programou para inverter a chave do poder e iniciar um processo de destruição dos direitos básicos no Brasil – sem que o povo tivesse forças para sair do sofá. No segundo plano, o cineasta nos provoca a sair dessa encruzilhada da História e seguir o rumo porque a vida passa diante dos nossos olhos. Compreender aquele diálogo ao fundo é fundamental para a fruição do restante do longa-metragem.

Dar o poder de escolha ao espectador, ao mesmo tempo em que insere a forte conotação política sobre a passividade da população no processo de usurpação de direitos, é o improvável clímax de “A Cor Branca“. Esse expediente será usado outras vezes e o filme segue até o fim se valendo da expectativa como premissa. E como era de se esperar, não se desdobra, porque qualquer renovação de expectativa em um ambiente como o nosso, é apostar cegamente contra a óbvia frustração.

Assista “A Cor Branca”, disponível até 30 de agosto de 2020:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

2 Comments

  1. Excelente crítica. Comete o desatino de nós orientar sobre algo novo e corajoso: Uma quebra da forma de cinema mastigado, a que estamos acostumadosa e gritando em voz baixa contra a farsa do impeachment da primeira Presidente mulher que teria que cumprir seu mandato pois nada fez que justificasse o golpe covarde usando a culatra da constituição.
    Parabéns ao critico e ao Afonso Nunes.

    1. Obrigado pelo comentário, Marcos! Realmente, o Cinema Brasileiro cada vez mais entrega obras muito corajosas, de quebra – como você mesmo disse. A Cor Branca sem dúvida é uma delas. Reflexo, em parte, do rompimento com parte da democracia participativa a qual sofremos em 2016, de fato. Agradecemos por partilhar sua opinião!

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