Sinopse: O documentário começa com a descoberta em 2012 de registros silenciosos de integrantes da GRIN (Guarda Rural Indígena) desfilando fardados em 1970. O filme continua a investigar esse grupo miliciano indígena, fundado e treinado pela ditadura militar no Brasil e nunca formalmente dissolvido até o presente. A partir de uma análise do material de arquivo e encontros atuais com ex-membros da GRIN e suas famílias se desdobra uma reflexão bifurcada sobre o legado da ditadura e o lugar dos indígenas na sociedade brasileira, no qual passado e presente pesam em igual medida.
Direção: Miguel Antunes Ramos
Título Original: A Flecha e a Farda (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 25min
País: Brasil
(Falsas) Impressões que Impressionam
Partindo de cinco rolos de películas encontradas no Museu do Índio, “A Flecha e a Farda” é o novo longa-metragem de Miguel Antunes Ramos, selecionado para a mostra Outros Olhares do 9º Olhar de Cinema – em estreia mundial no festival. Trata-se de mais uma importante obra de resgate sobre o(s) genocídio (s) indígena(s) – são tanto séculos que é impossível considerar algo único – em um período muito particular do Brasil: a ditadura militar.
Uma outra produção fruto da formação da Comissão da Verdade, criada para investigar os crimes cometidos naquela época, também revelou os métodos em um centro de tortura conhecido como Reformatório Krenak. Em “Resplendor“, Claudia Nunes e Erico Rassi nos mostra a maneira mais direta da opressão do regime, baseada em prisões arbitrárias. O caminho que o diretor segue aqui difere no ponto de partida, mas encontra esse filme, exibido na Mostra Ecofalante ao final.
Há uma questão de “A Flecha e a Farda” que dava a impressão de que merecia ter se sustentado mais: a aposta na força daquelas imagens de arquivo – um entendimento que seria contradito na experiência pós sessão. Antunes Ramos desmembra o máximo que pode aquelas representações. Contextualiza a atuação do Capitão Pinheiro, que no final do mês de março deste ano foi denunciado por violações aos direitos humanos contra o povo Krenak (leia aqui a notícia). Mostra a formação de um grupo paramilitar que reunia várias etnias indígenas em uma composição que provoca indignação ao mesmo tempo que assusta. Marca posição sobre como a presença de Costa Cavalcanti, Ministro do governo Médici, comprova a chancela estatal àqueles procedimentos.
Independente da gravidade de um regime, sua sustentação precisa ser analisada em todas as suas manifestações. A curiosidade sobre a obra residia no fato das produções anteriores do cineasta terem um viés investigativo. “Filhos de Macunaíma” (2019) já se encaixava dentro da temática dos povos originários. Porém, Roberta Mathias chama a atenção em seus textos sobre “Banco Imobiliário” (2016) e de uma análise de três curtas-metragens anteriores – a qual intitulou Trilogia Miguel Antunes Ramos – como esse caminho exploratório sobre as configurações urbanas de São Paulo eram apresentadas.
Ao dizer que a experiência pós sessão foi fundamental – e por isso festivais como o Olhar de Cinema são tão relevantes para a agenda do audiovisual brasileiro – é que o cineasta tem a possibilidade de nos informar sobre seu planejamento inicial – caindo por terra toda a sensação de mudança de foco da parte final de “A Flecha e a Farda”. Não há um abandono da potência do arquivo – que conta com o histórico frame da representação do pau-de-arara, técnica de tortura que os militares negam até hoje existir. O que existe é uma ocupação dessa linguagem, imposta na construção da obra.
Antunes Ramos tencionava seguir a formatação a qual lhe sente mais à vontade, a de registro. Eduardo Xerente é o intérprete de entrevistas com ex-participantes da GRIN (Guarda Rural Indígena). Ao iniciar nesse ponto, nos aproximar dos arquivos e se debruçar nos debates atuais sobre demarcações de terra, o espectador tende a acreditar que o interesse por múltiplos objetos tiraria a força do documentário, como se, ao trazer uma visão panorâmica, isso pudesse ser interpretado como perda de foco.
De fato, o longa-metragem é uma obra panorâmica e de desdobramentos de linguagens. Imaginar um adepto à pesquisa como Miguel se deparar com os arquivos do Reformatório Krenak e não usá-lo na montagem já nos leva ao sofrimento pelo hipotético dilema. Porém, ao lado da montadora Luisa Lanna (em trabalho bem diferente e tão espetacular quanto o de “Yãmĩhex: As Mulheres-Espírito“, exibido no mesmo festival), ele deixa bem claro os caminhos que o filme seguiu. Revisitando em pensamento após o debate, as escolhas ampliam seu alcance porque sugerem relações de causa e efeito que a arquivologia não alcançaria.
Ou seja, “A Flecha e a Farda” é um ótimo exemplo de concessões de um realizador que – tendendo a uma metodologia – identifica a carga narrativa em outras formas de representação. Consegue entregar uma produção no “estilo Miguel Antunes Ramos” sem deixar de marcar na lembrança do público imagens impressionantes.
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