Alice Junior

Alice Junior Filme Netflix Crítica Pôster Gil Baroni

Sinopse: Alice Júnior é uma YouTuber trans cercada de liberdades e mimos. Depois de se mudar com o pai para uma pequena cidade onde a escola parece ter parado no tempo, a jovem precisa sobreviver ao ensino médio e ao preconceito para conquistar seu maior desejo: dar o primeiro beijo.
Direção: Gil Baroni
Título Original: Alice Junior (2019)
Gênero: Comédia
Duração: 1h 27min
País: Brasil

Alice Junior Filme Netflix Crítica Imagem Gil Baroni

País das Maravilhas x Cova dos Leões

Alice Junior“, dirigido por Gil Baroni, rompeu algumas barreiras nos últimos meses – duas delas registradas por mim e por Roberta Mathias. Com um filme que parte de uma linguagem que se propõe a uma atualização estética, uma aproximação com as novas gerações, minha parceira de Apostila de Cinema assistiu presencialmente (palavra que já carrega saudade) a uma das grandes sessões da produção. Na Cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro, em dezembro de 2019, no Festival do Rio. Uma ocupação de espaço de adolescentes, convidados de honra de uma obra que não se esquiva de defini-los como público-alvo. Um lugar que a maioria provavelmente não iria se não conduzido por suas escolas – e que, sempre torcemos, retornem várias vezes por encontrar no Cinema um amigo e conselheiro.

Se há uma metodologia que o audiovisual aplica cada vez mais é a da ressignificação. Uma palavra, aliás, que se tornou comum nos últimos anos e que ganhou ainda mais projeção em 2020, quando muitos precisaram se reinventar. Aqui, o cineasta não pratica subversão, pelo contrário. Ele eleva alguns símbolos totalmente vinculados à heteronormatividade, desde que cumpra a função de dar uma nova leitura possível. Os créditos iniciais, por exemplo, retomam a cansada dicotomia entre o rosa e azul – a partir da fumaça que leva a primeira cor a invadir o espaço da segunda. Uma ocupação tão significativa quanto a daqueles jovens no MAM, que talvez tenham ignorado a seleção do longa-metragem para a mostra Generation do Festival de Berlim de 2019 – e os quatro troféus candango do Festival de Brasília, algumas semanas antes daquela sessão. Não porque não se importem, mas porque não faz parte da área de interesse deles.

Dentre os prêmios, o de melhor atriz para Anna Celestino Mota. Ela surge em um prólogo onde Baroni faz de “Alice Junior” quase um desktop movie. Uma apresentação sucinta, contundente, em formato de vlog do canal do YouTube da protagonista. Montada como se víssemos na tela não-maximizada de um computador. Essa linguagem não é tão nova no circuito alternativo. Lembro quando assisti “Fôlego” (2018) na 10ª Semana de Cinema em que o diretor Renato Sircilli usaria essa estética sem dar tal pista na sinopse. Era a primeira vez que me deparei com uma obra desktop e o pioneirismo era bem pretérito. Todavia, para um público maior, essa abordagem ainda é muito nova.

Tão nova que é possível que o estranhamento seja uma reação natural – mesmo diante de uma flagrante aproximação do que se consome de audiovisual atualmente. Essa não é a única maneira do cineasta atualizar seu filme. Adiciona na pós-produção elementos na tela que sintetizam os memes e outras manifestações vistas como integrantes do mundo das redes sociais. Há o risco de datar a obra, não há dúvida. Isso só saberemos daqui há alguns anos, quando GIFs e figurinhas da Gretchen forem substituídas por outra coisa. O importante é ousar e não pesar essas escolhas. “Alice Junior” se apresenta para uma geração forjada para ama-la incondicionalmente. Um dia eles olharão para o filme de Gil Baroni com o mesmo saudosismo com o qual lembramos aqui dos sons do modem conectando e dos barulhos do ICQ em “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009).

Alice Junior Filme Netflix Crítica Imagem Gil Baroni

O elenco jovem é um dos destaques do longa-metragem. Há uma química que promove um salto de qualidade, o que faz com que – ao final – o espectador naturalmente se interessa pela continuidade daquelas relações. É quando entramos em outro elemento fundamental para o sucesso da produção. Ao criar no Instagram contas sobre filmes, a intenção da equipe sempre é criar uma expectativa pelo lançamento. Em “Alice Junior” há outra função, a de prolongamento da experiência. Importante para a identificação do público-alvo com a narrativa ali construída, mas também relevante para a consolidação enquanto personagem.

Nisso, entramos naquela que talvez seja a ocupação mais marcante do filme de Baroni. Mais do que a seleção para Berlinale, os prêmios em Brasília, as trocas com as plateias de Festival do Rio e Mostra SP. 2019 ficou para trás e 2020 levou à produção para a plataforma de streaming Netflix. A segunda barreira lá do início e que nos motivou a trazer o filme de volta à Apostila de Cinema. Uma importante fronteira de popularização – que poderia ser mais efetiva se o serviço divulgasse com tanta energia seu catálogo nacional como o faz com as comédias e filmes de ação enlatadas que congestionam o menu inicial. Nessa revisitação de “Alice Junior”, tornou-se fundamental tentar decifrar o olhar do espectador-médio. Aquele que fura a bolha em que a equipe imaginou serem os reais interessados pela trajetória conduzida por Anna Celestino Mota.

Esses não encontrarão dificuldades de leitura. O diretor é bastante referencial na narrativa. Traça uma linha norte-sul no país em uma trama com pontos universalistas. Marca essas caracterizações com o uso de Chico Science na trilha, por exemplo. Usa as araucárias para nos lembrar que, mais do que uma mulher que carrega consigo importantes questões contemporâneas, ela é uma pernambucana que precisa se adaptar às visões de um Brasil que pouco parece o dela. Momento em que ela, no meio de algumas manifestações discriminatórias, encontra acolhimento. Aqui se passaram alguns parágrafos e o fato de Alice ser uma mulher trans não se tornou objeto central. Faz toda a diferença para a estrutura da obra, mas a lição do acolhimento, esta sim, é universalista também.

Agradando aos puristas que torcem o nariz a quem faz críticas focadas em conteúdo sem passar tanto pela forma, deixamos algumas centenas de palavras bonitas sobre linguagem aqui em cima. Agora, vamos ao que interessa: a aplicação de todos esses preceitos audiovisuais a favor de uma história. A estética imposta por Gil Baroni, que encontra um tom de dinamismo perfeito para a geração multitask, que precisa de um produto que prenda sua atenção (pois costuma dividi-la com as dezenas de aplicativos de seus smatphones) nada valeria se não contasse, ao final, uma boa história. E o que torna “Alice Junior” tão apaixonante enquanto narrativa? Bem, algumas coisas.

Veja o Trailer:

Para os que procuram diversão, temos a trama sobre uma menina que, apesar de não ser malvada, tem um plot de inserção em uma sociedade estranha parecido com a Cady vivida por Lindsay Lohan no filme de 2004. Articulada com a leveza de um bom filme de verão, que replica um pouco essas produções de temporada de férias. Gil Baroni até brinca com essa premissa na cena mais marcante do filme que, sem spoilers, mencionaremos que acontece uma pool party. Flopada. Que já se entrega flopada quando o espectador é colocado ali. No som, “Menina Veneno”, de Ritchie, fenômeno musical de 1983. Aquela que costumávamos ouvir em filmes parecidos com esse lançados naquela década.

Um registro do envelhecimento de obras como “Menino do Rio” (1982) e “Rock Estrela” (1985) – confesso que minha geração está mais para “Sonho de Verão” de 1990, quando Xuxa era tão dominante no cinema que inaugurou o “filme de Harry Potter sem Harry Potter, Supla e Conrado” com esse spin off protagonizado pelas Paquitas. O que há em comum entre todas elas é que foram construídas dentro da lógica heteronormativa pulverizada pela geração de “Alice Junior”. Não há sentido em olhar mais para os simbolismos do passado com uma visão saudosista. Pelo contrário, conservar voltou a ser um verbo mal recebido porque ele impede avanços.

Em demandas que se empilham na sociedade, a sequência mencionada marca o ponto da interseccionalidade. Aliás, pausa para respirar – porque 2021 me obrigou a adicionar ao dicionário do meu navegador “flopada”, “heteronormatividade” e “interseccionalidade”. Falar sobre o filme e ter essas discretas respostas em formato de palavras sublinhadas em vermelho dizem muito do quanto precisamos avançar. Uma geração que, esperamos, seguirá uma tendência de não aguardar chancela de nenhuma parte para se consolidar. Há um senso de urgência curioso e que “Alice Junior“, enquanto filme, consegue traduzir. Seria o lado bom de todo o imediatismo que muitas vezes criticamos.

Um imediatismo que tornará impossível a muitos aguentar tanto parágrafo e tanta palestrinha (sublinhada em vermelho) sobre um filme que muitos assistirão com a proposta de entretenimento escapista (novamente, com conotação positiva) – e que, por isso mesmo, levará muita gente a pensar. A rever a sua própria lógica. Se você chegou até aqui, é provável que não ligue para um spoiler de “Alice Junior” – porque é preciso usá-lo para tratar do que há de mais espetacular (e, ao mesmo tempo, simples) em sua narrativa: a ausência de redenções hipócritas.

Por sinal, um expediente que os gêneros com os quais o longa-metragem se comunica adoram fazer. Regina George deixa de ser malvada, Stifler se torna um paladino do respeito e da tolerância depois de tanto bullying, homofobia e cuecão (não sublinhado em vermelho) nos amigos. Era a maneira como a lógica industrial do cinema gostava de dar as suas lições. Elas seguem sendo praticadas, mas para o público do longa-metragem isso não é o suficiente. Transfobia, outra palavra sublinhada em vermelho – e adicionada ao velho dicionário do Windows 10, lançado no mesmo mês que a história protagonizada por Anna Celestino Mota chegava à Netflix. Parece pouca importância para se debater esses termos – e talvez seja mesmo.

Porque, no final, a grande lição de “Alice Junior” é essa: a transfobia não acaba em um passe de mágicas. Aqueles que a praticaram na pool party outro dia mesmo (sem Duda Beat e Pablo Vittar, onde já se viu?) não se arrependerão porque a vida não é uma comédia hollywoodiana em que a pauta identitária passa atravessada (para que o filme, enquanto produto, agrade a todos). A realidade é a de enfrentamento de leões. Porém, é possível deixar tudo o que faz mal do lado de fora e celebrar a vida se voltando aos seus. A associação a partir do amor e do querer bem também é uma forma de enfrentamento.

Ouça a Música:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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