Crítica de Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, representante brasileiro no Oscar.
Sinopse: Sitiado pelo câncer e perto do fim, o brilhante cineasta argentino-brasileiro Héctor Babenco (1946-2016) pede a Bárbara Paz, sua esposa, um último desejo: ser o protagonista de sua própria morte.
Direção: Bárbara Paz
Título Original: Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 14min
País: Brasil
Anarquista, Apátrida e Apaixonado
(Não Soltem Fogos no Réveillon)
Há tempos identificamos nas redes sociais um exercício interessante de relacionar o primeiro filme assistido em determinado ano com o último do ano anterior (ou primeiro e último do mesmo ano). É como se a nossa história pudesse ser recortada em um arco de tempo definido pelo ciclo solar, como gestado na Mesopotâmia cinco mil anos atrás, aprimorado e oficializado pelo Papa Gregório XIII há pouco mais de quinhentos. Para todos direi que, sim, é possível falar da nossa vida através do Cinema – talvez não necessariamente com o pragmatismo tal qual relógios e calendários nos impõem. Veja o caso da experiência de “Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou“, de Bárbara Paz.
O primeiro filme da Apostila de Cinema de 2021 se relaciona com o(s) último(s) por ter a arte cinematográfica como mote, já que encerramos aquele ciclo cobrindo a Mostra Cinemas do Brasil. “Um Filme de Cinema” (2017), por exemplo, traz o registro dos bastidores de “Carandiru” (2003), eis que o cineasta foi um dos entrevistados de Walter Carvalho. Pessoalmente, o documentário me fez lembrar da última obra audiovisual que consegui consumir em 2020. Pouco antes da 00:00 do dia 31 de dezembro. Um vídeo de cinco minutos de um adestrador de cachorros ensinando formas de acalmar um animal assustado com os fogos. Esse foi meu primeiro ano com um “amigo de patas” em casa e todas as dificuldades de marinheiro de primeira viagem surgiram. Como isso se encontra com Babenco?
Em determinado momento do vídeo, o adestrador diz que reações de pânico, não apenas nos cachorros, é natural porque nos antecipamos aos eventos aos quais temos medo. O medo é o que nos prepara para a vida. Esse, portanto, é um mecanismo de defesa. Hector Babenco foi um profissional de seu ofício que dificilmente duvidou da relevância de seu trabalho. Dirigiu algumas das mais populares e premiadas obras do Cinema Brasileiro de seu tempo e, quando se envolveu em produções no exterior, atingiu o panteão da indústria ao ser indicado ao Oscar de melhor diretor em 1986, por “O Beijo da Mulher Aranha” (1985). Ao lado de John Huston e Akira Kurosawa (além do vencedor Sydney Pollack). “Entre Dois Amores” seria o grande vencedor daquela noite, mas William Hurt, na categoria de atuação, tornou uma produção de Babenco oscarizada. Agora, o documentário foi selecionado para ser o representante do Brasil na edição 2021 do prêmio.
Hector Babenco não parecia ter medo da morte – talvez do que lhe seguiria. Há duas formas de ler “Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou“. Com técnica e com emoção. Nenhuma das duas nos decepciona. Unindo nomes fortes nas associações de produção, como Petra Costa (que também chegou àquele tapete vermelho ano passado por “Democracia em Vertigem”) e Willem Dafoe (protagonista do último filme do diretor), Bárbara Paz nos entrega uma obra carregada de generosidade. São trocas, as quais ela não se esquiva. Há momentos em que Babenco é uma mistura de professor com co-diretor do filme que o registra. Não há necessidade de ouvi-lo falar de técnica, por ele demonstrar total controle de foco e de posicionamento, “olhando para o olhar” da câmera. Os movimentos de Bárbara, fora do nosso enquadramento, são captados e traduzidos por ele.
A diretora, então, faz um trabalho de edição que potencializa a carga poética do filme – provavelmente a característica mais marcante para grande parte do público. São nove montadores na produção (dela mesma ao experiente Eduardo Escorel). A rotação mais lenta nos paralelos entre as falas de Babenco e algumas cenas de sua filmografia ampliam essa sensação desde a primeira vez em que é utilizada, com várias sequências de fuga logo depois de uso do mar e da quebra das ondas. Por sinal, o ponto inicial da narrativa. Talvez fuga seja a palavra que reúna a técnica com o sentimento. Não dá para negar que há, no processo produtivo deste filme, uma tentativa de consolidação da vida na morte. A experiência passa por ouvir Babenco e pouco ouvir Bárbara, mas ler os dois comportamentos como manifestações de amor.
Tanto que ela insere, em determinado momento, um sugestão em forma de brincadeira do biografado. Ele fala para ela cortar parte dessas manifestações apaixonadas, senão o filme teria cinco horas – ou viraria uma série. Apaixonado é a primeira grande característica identificada em “Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou” – mas é a última do nosso título porque ela sintetiza todas as outras. Um artista que se fixou no Brasil porque gostou da “energia caótica” daqui. Lidou com a morte desde cedo ao comercializar covas e marcou logo no início da carreira duas décadas do cinema nacional com “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia” (1977) e “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (1981). Quando nossa produção morreu, brincou de dirigir sucessos de crítica no hemisfério norte, com “O Beijo da Mulher Aranha” (1985), “Ironweed” (1987) e “Brincando nos Campos do Senhor” (1991).
No segundo dessa lista, pode tratar do primeiro reflexo de medo da morte, quando descobriu um câncer aos 38 anos. Em entrevistas que remontam a essa fase, digamos, internacional, Babenco se dizia anarquista. Ao não se prender a sistemas de governo, ele transitou por vários e seu talento se sobressaiu independente de qualquer coisa. Por outro lado, o documentário foge da dicotomia vida x morte ao tratar sobre identidade. Hector não usa essas palavras em nenhum momento, mas parece se sentir um pouco apátrida. Visto como argentino no Brasil e como brasileiro na Argentina. Para lá, retorna em “Coração Iluminado” (1998) e “O Passado” (2007). No intervalo, marca mais uma década do Cinema Brasileiro, em uma das grandes bilheterias do final da Retomada com “Carandiru” (2003).
Ele ainda divide o conceito de ser judeu no meio de uma via de mão dupla latino-americana. Só que ele é um apaixonado, lembra? A arte sempre falou mais alto e Babenco seguiu produzindo até sua obra derradeira, “Meu Amigo Hindu” (2015), uma mistura de réquiem com rito de passagem. Bárbara Paz ainda divide algo como uma última refeição com algumas das grandes figuras vivas da nossa cultura, como Fernanda Montenegro e Paulo José.
Em “Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou” presenciamos um homem que se adaptou até o fim às condições e uma mulher que nos provê o que de real aconteceu. Sem depoimentos póstumos, que por vezes macula a leitura sobre uma pessoa que se foi, dado o distanciamento histórico e a consolidação da saudade. Infelizmente, Hector Babenco se foi. Espero que saiba que não será esquecido tão cedo. Iniciou meu 2021 pensando quantas milhares de famílias se lembraram dos seus em um dos anos mais difíceis da nossa existência – enquanto outras tentavam em vão acalmar seus cachorros com medo dos fogos.
O texto, atrasou. O vídeo do adestrador não foi o suficiente. Só no dia dois a casa dormiu tranquila, sem o terror dos fogos. Duas também são as lições: não solte fogos no Réveillon e ame como Babenco.
Veja o trailer:
Ouça a música: