Um Filme de Cinema

Um Filme de Cinema Documentário Walter Carvalho Crítica Pôster

Mostra Cinemas do Brasil 2020

Sinopse: Um cinema abandonado e em ruínas no interior da Paraíba é o cenário inicial de um filme sobre o cinema, que viaja nos depoimentos do romancista e dramaturgo Ariano Suassuna e de inúmeros cineastas, como Bela Tarr, Júlio Bressane, Ruy Guerra, Jia Zhang-ke e Karim Aïnouz. Eles discutem questões sobre a linguagem cinematográfica: como atingir a verdade? O cinema deveria ser realista ou privilegiar o falso? Qual é o papel da objetividade na hora de filmar? Como explorar o som? Qual é a diferença de usar planos longos em relação aos curtos?
Direção: Walter Carvalho
Título Original: Um Filme de Cinema (2017)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 50min
País: Brasil

Um Filme de Cinema Documentário Walter Carvalho Crítica Imagem

Cinema é Organismo, Sociedade é Cachoeira

Não havia melhor forma de lembrar os 125 anos da primeira sessão de cinema que não assistindo a “Um Filme de Cinema“, parte da programação da Mostra Cinemas do Brasil. Lá se vão pouco mais de duas linhas e usamos, contando com o título, quatro vezes o nome de um dos grandes amores que passarão pelas nossas vidas. Walter Carvalho faz um documentário que une a paixão e a técnica; o sentimento e as lições que grandes realizadores contemporâneos podem nos passar.

Em suas andanças pelo mundo entre os anos de 2002 e 2014, o diretor reuniu depoimentos de alguns dos mais renomados colegas de profissão. Sua ideia é encapsular as ideias por trás do conceito de cinema, montando sua obra de forma a promover um pouco da decupagem de elementos clássicos do fazer audiovisual. Nas duas pontas, ele nos lembra o motivo de tudo isso: nos transporta para o Cine Continental, ponto de cultura degradado da cidade do Boqueirão, no sertão paraibano. Ali ele lembra do início da ideia por trás da imagem-movimento, com a cavalgada de Muybridge, ainda na época conhecida como pré-cinema.

Não é só Deleuze que é lembrado por nomes como Béla Tarr, Lucrécia Martel e Jia Zhangke. A forma como Sartre sentenciava a experiência de uma sala de cinema como algo fundamental para todos aqueles que ali estiveram é parte de uma leitura que se encontra em processo de ressignificação (ampliada nesse ano de isolamento social e fechamento das salas). O próprio Tarr lembra, em determinado momento, da ampliação de acesso às ferramentas de produção, simplificadas com a digitalização. Se encontra na fala de Karim Aïnouz sobre o desapego à narrativa e na de José Padilha sobre o controle que o estúdio tenta exercer a partir da importância dada ao roteiro – e como cineastas que quebram essa dependência giram a chave.

O fim é a tela“, uma vez diz Bresson. Walter Carvalho desenvolve, então, sua própria linguagem dentro do que jamais seria simples captação de falas. Quem lembra dessa frase é Ruy Guerra, com quem se cria um diálogo entre obras. De forma quase litúrgica, Carvalho repete o uso de grandes sombras em um prédio histórico que Guerra desenvolve em “Veneno da Madrugada” (2005). Usa o set do entrevistado para traçar o paralelismo e entrega ao espectador uma linda sequência do filme do documentado.

Essa não é a única vez em que outro filme se insere na construção de Walter para ilustrar algum discurso. Por isso falamos que há um aura de aula em alguns momentos do documentário. É uma troca de experiências somada ao amor pelo arte que faz com que todos aqueles olhares se unam. Uma mistura de “Quarto 666” (1982) de Wim Wenders e “Janela da Alma” (2001), o co-dirigido por Walter Carvalho ao lado de João Jardim. Todavia, no meio de tanto amor, nada soa como professoral. Mesmo assim, lições preciosas sobre plano e enquadramento são parte do que há de mais valioso no filme.

Guerra inicia os trabalhos ao relacionar o tempo do plano com uma vida. Saber o final é fundamental, uma vez que o sentido de nossa existência só parece, de fato, ser determinado na morte. Entender o enquadramento como exclusão e o antirealismo da trilha sonora também como fragmentos de vida aumentam a potência das vozes. O mesmo ocorre com a poesia que Carvalho propõe para “Um Filme de Cinema“. Quando Lucrécia Martel se levanta para buscar um pedaço de papel, por exemplo, estamos diante de um generoso ato de compartilhamento de uma inestimável cineasta latino-americana. O diretor, então, não quer acompanhá-la. Ele mantém a câmera estática, no mesmo foco, o que torna tudo um pouco mais turvo. Um lindo exercício de “permanência da imagem” e de uso do vazio – enquanto esperamos o retorno da protagonista.

Quando Júlio Bressane cita “Limite” (1930), de Mário Peixoto, não há como se lembrar dessa cena de Lucrécia, original e unicamente composta pelas lentes de Walter. Com sua paixão, Bressane fala do abandono de cena gestada por Peixoto e como o plano não-convencional também é uma convenção. Mais duas grandes lições de “Um Filme de Cinema”. Resgatar outras seria revistar longamente a obra, que é daquelas que devem ser reassistidas quando em sempre. Do uso do som e da importância do corte na inesquecível cena de dança de “O Bando à Parte” (1964) de Jean-Luc Godard até a relação entre “Elefante” (2003) de Gus Van Sant e “Santantango” (1994) de Béla Tarr – passando pela visão sempre decolonizante de Ariano Suassuna, que lembra de, ainda criança, ter odiado “Gold Diggers” (1933), um dos primeiros sucessos de Mervyn LeRoy.

Todo filme tem sua convenção e aquela que o documentário encontra é a da partilha. De Ken Loach a Andrzej Wajda, nos sentimentos em um espiral de espaço-tempo. A diferença de tecnologia da captação das imagens ajuda nessa ideia, que parece um tomo de um livro sobre Cinema em constante produção. Tem uma alma única, um frescor que a revisitação de imagens de arquivo por vezes não consegue. Tudo é pela lente de Walter Carvalho – e há um espaço especialmente reservado para as lentes também. O que mais se assemelha a um arquivo é a fala de Hector Babenco, no set de “Carandiru” (2003), um de seus grandes sucessos de público. Falecido em 2016, esse ano ele voltou às memórias dos amantes do cinema com o documentário dirigido por Bárbara Paz.

O terço final da obra reserva a carga maior de sentimentalismo. Nada apelativo ou gratuito, pelo contrário. Dá forma a uma brincadeira que usa o menino de “Cinema Paradiso” (1988), filme que – por mais saudosista que a Apostila de Cinema evite ser – acaba sendo lembrado volta e meia por aqui. No apagar das luzes de 2020, que nos remonta ao primeiro apagar de luzes que nos fez sonhar em 1895, Walter Carvalho enternece a dureza de um ano trágico, que nos levou Ennio Morricone.

Em algum momento alguém lembra que as diversas possibilidades, fases e desenvolvimento de um filme o tornam um organismo, mais do que uma linguagem. Verdade. Ninguém lembrou da célebre frase de Humberto Mauro, de que “cinema é cachoeira”. Amamos tanto essa arte porque ela parece ser um pouco a sociedade – um organismo tão curioso quanto o próprio audiovisual. “Um Filme de Cinema” é uma mistura de sentimentos que faz resgatar os motivos pelo qual uma arte tão complexa se torna apaixonante por infinitas razões.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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