Sinopse: Para muitos de nós, faz parte da rotina: os cuidados com a higiene e os produtos que usamos diariamente nos colocam em contato com centenas de substâncias químicas. As companhias multi-bilionárias da indústria cosmética nos asseguram que não há razão para se preocupar. No entanto, uma ação judicial coletiva histórica contra a Johnson & Johnson e seu talco para bebês afirma que a multinacional sabia dos ingredientes cancerígenos mas nada fez. “Beleza Tóxica” é um documentário contundente sobre a falta de regulação da indústria cosmética e sobre o verdadeiro custo da beleza.
Direção: Phyllis Ellis
Título Original: Toxic Beauty (2019)
Duração: 1h 30min
Gênero: Documentário
País: Canadá | EUA
Presunção de Inocência que Nos Mata
Sempre que saio às compras ou entro em uma farmácia, me incomoda muito aquela sensação de que estamos em uma espécie de oásis da beleza. O desenvolvimento das cidades e globalização do consumo construiu uma cadeia de incentivo a aquisições de produtos que segue uma escala perigosa. Os supermercados são cada vez mais iluminados, coloridos, variados. As drogarias também. Tenho certa dificuldade em compreender o que levaria uma pessoa a um estabelecimento que vende remédios e produtos de higiene a comprar bens que não necessita – ou por simples indução do fornecedor. Mas quem pensa assim, hoje, é exceção. “Beleza Tóxica“, documentário canadense exibido na Mostra Consumo da Mostra Ecofalante, pelo título e imagens que o acompanhavam, certamente falariam dos males dos produtos de beleza. Assistido encontramos uma das obras do festival com mais força para trazer consequências diretas.
O filme de Phyllis Ellis tem um foco: o risco do desenvolvimento de câncer de ovário em mulheres que usam talcos da Johnson e Johnson. A partir dessa investigação abrimos diálogo para debates gerais sobre a indústria da beleza. Uma ditadura para as mulheres, que desde sempre e nas mais diversas culturas, foram doutrinadas a se preocupar mais com sua aparência do que os homens. A montagem traz comerciais e vídeos antigos, palestras que parecem envelhecidas, mas não esqueçam que por aqui temos a chamada Escola de Princesas em pleno 2020. A precaução nos faz tratar como riscos, mas sabemos que a química desses produtos tem um poder devastador. O pior é que eles fazem justamente o contrário do que propõem: matam as células e desregulam os hormônios femininos. As químicas dos produtos específicos para peles negras afetam ainda mais as consumidoras.
Hidrantes com mercúrio, batons com chumbo e xampu com parabeno… Se tudo isso é novidade para você, talvez “Beleza Tóxica” seja a produção mais urgente da mostra. A desinformação e os movimentos anticiência seguem uma escalada e agora atingem o mundo corporativo. Nada em nossa sociedade acontece sem propósito e há, em empresas como a Johnson e Johnson, motivos para que pesquisas seja desacreditadas. Isso vem levado cada vez mais as mulheres a desenvolverem câncer de ovário e de mamas, interrupções de gravidez, infertilidade e menopausa precoce. Mesmo assim, aquela farmácia perto da sua casa (já percebeu que dificilmente precisamos andar mais do que dez minutos para chegar em uma?) está sempre com novos produtos ou os mesmos em novas e mais atraentes embalagens.
O que o documentário faz é atacar em três frentes. Mostra um grupo de vítimas de câncer de ovário, que usavam diariamente o talco em suas tentativas de processarem a empresa; debates no Congresso dos Estados Unidos sobre a regulamentação dos produtos desta natureza; e uma jovem especialista em Ciências Médicas que se dispõe a ser uma “cobaia do bem”. Ela se propõe a deixar de usar os inúmeros produtos que aplica no seu corpo durante o dia, passando a se valer apenas de artigos naturais. O resultado, para a sua saúde, é imediatamente positivo. Mas ela se sente mal em não ter acesso às maquiagens, perfumes, sabonetes e a infinidade de artifícios que atingem diretamente sua autoestima. Há momentos em que algumas das entrevistadas reforçam que exageram no consumo porque todas as mulheres próximas também o fazem. Aquela moça, então, fala com sinceridade como se sentiu suja e evitou até a socialização nos dias em que, na prática, não deixou a indústria te dominar.
Como resolver um problema intrínseco em nossa cultura? Não há como resolver. Até porque fazemos parte de um sistema que não nos permite receber as informações. É aqui que “Beleza Tóxica” toca na regulação da atividade. Nos Estados Unidos, a FDA (Food and Drug Administration) é uma agência reguladora bem parecida com a nossa Anvisa – porém com mais atribuições e poder. Até hoje não há uma legislação que exija a comprovação de que novos produtos relacionados à higiene e beleza façam mal à saúde. É uma presunção de inocência – que nos mata. Toda vez que novos ingredientes ou elementos de algo que está na prateleira das farmácias ganha os noticiários como potencialmente danoso, a FDA abre novos procedimentos na tentativa de regulamentar. Só que as grandes corporações, em lobby parecido com o da Disney em relação ao domínio público do Mickey (clique aqui se não conhece a história), se comprometem a tomar os cuidados e fazer as pesquisas prévias necessárias dali em diante. Até que os novos reagentes também são danosos e um novo ciclo se inicia.
Só que o documentário de Ellis adiciona um elemento de denúncia – e por isso falamos de início sobre sua força de transformação direta. Ele nos apresenta registros de que, no caso do talco, a Johnson e Johnson procura um substituto desde a década de 1960, por saber que ele é potencialmente cancerígeno. Aliás, reportagens dos anos 1930 já falavam da retirada de certos itens de beleza das prateleiras por provocar consequências como a cegueira de quem os usava. Ou seja, há quase sessenta anos a empresa espera que essa bomba estoure – e mesmo assim continua vendendo milhões (talvez bilhões) deste produto anualmente. Se pensarmos em todos os graves problemas de nossa sociedade de consumo, perigamos taxar a nós mesmos de neuróticos. Mas todo cuidado é necessário. Duvide. Questione. Leia rótulos. “Beleza Tóxica” se encerra mostrando que a Justiça – aquela que deveria ser vista como último recurso – pode acabar se revelando a barreira final.
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