Sinopse: Beyoncé Knowles recria a história de “The Lion King”, clássico da Disney, voltando-se para as raízes de antepassados e utilizando a música como narrativa.
Direção: Beyoncé Giselle Knowles-Carter
Título Original: Black is King (2020)
Gênero: Musical
Duração: 1h 20min
País: Estados Unidos
Branco é o Sistema
Em “Black is King”, Beyoncé Giselle Knowles-Carter resgata as origens de sua família, mas também as da famosa animação da Disney, “O Rei Leão” (1994, refilmado em 2019). Tanto o desenho em si quanto a própria Beyoncé já foram acusados de plágio em ambas as obras. Não é dessa forma, no entanto, que pretendo narrar a história do filme. Tanto a multiartista estadunidense quanto eu fomos (e somos) atravessadas por diversas experiências que fazem desse longa-metragem e a possibilidade de assisti-lo muito mais do que uma questão de autoridade no sentido estrito da palavra. Creio que essa autoridade (ou autoria) vem na forma do conjunto e das experiências que os corpos negros enfrentam em seu caminho.
Começo, então, com a minha experiência. Ao terminar de ver o filme, não sabia exatamente se escreveria ou não o texto. Porém, em uma das poucas vezes em que saí do isolamento desde que começou a Quarentena em março de 2020, escutei do caixa da farmácia sobre uma senhora sem máscara, que insistia em nos encurralar perto dela: “Espero que seja multada… Se bem que ela é branca, né? Isso não acontece com gente branca“. Sabemos muito bem que as abordagens, quando ocorrem, são diferentes. E, no fundo, penso, que é disso que o filme de Beyoncé trata também.
Quando voltei, me lembrei de uma frase que havia lido há muito em um livro de Rancière (sim, outro pensador branco, mas por isso mesmo estamos construindo nossas próprias narrativas – e a da diretora é impactante). A frase, que não é do filósofo francês, mas do professor Jorge Larrosa ao apresentar seu livro, é: “A experiência, e não a verdade, é que dá sentido à escritura“. Como me lembrei disso? Não sei, mas talvez porque essa frase ecoe em meu fazer profissional e em minha construção enquanto cientista social. É a experiência que transita por nossas vidas e nos faz escrever, pensar, viver e construir verdades momentâneas e coletivas.
Nesse sentido, “Black is King” constrói a partir da corporalidade, dos figurinos, das coreografias, dos cenários e da música uma verdade bem conhecida por homens negros. Apesar de ser a diretora e uma das protagonistas, Beyoncé dedica o filme ao seu filho Sir Carter justamente porque ela sabe quais seriam as dificuldades encontradas por ele, caso não fosse filho do casal “Knowles-Carter”. A artista sabe do sofrimento do jovem negro em determinados espaços e faz da narrativa, em alguns momentos, contemporânea. Principalmente ao trazer o embate entre seu tio e Simba. Simba encontra um espaço que pode ser identificado como um dos perigos eminentes ao jovem pobre de periferia – em qualquer país e, não somente nos EUA. Entre a sedução pelo que parece distante e a imediata identificação policial desses jovens como parte integrante de gangues, o jovem negro precisa se proteger como nenhum outro corpo.
Essa experiência dolorida e dolorosa faz com que muitos de nossos jovens (aqui e lá) morram antes de chegar à idade adulta. Muito já se falou sobre o genocídio da população negra, mas é impossível não citá-lo quando sabemos que ele continua a ocorrer, agora agravado por uma doença a qual muitos não têm como escapar, seja pela falta de infraestrutura, seja pela necessidade imediata de trabalhar continuamente.
Em “Crítica da Razão Negra”, Mbembe, em uma alusão direta ao livro de Kant, “Crítica da Razão Pura”, nos conduz pela análise de um capitalismo destruidor que vê os corpos como códigos de barra. Somos mercadorias e, dentro desse mercado, o corpo negro é o que menos vale. Mbembe nos alerta, porém, que cada vez mais essa lógica vem se espalhando para todos os corpos (podemos citar alguns discursos que tratam as morte pela Covid-19 como números e não como pessoas). Pois, é dessa maneira que os negros são tratados desde a invasão e expulsão de suas terras.
Assim, “Black is King” aparece como um importante registro de referências culturais negras que precisam ser exaltadas. Se não por nós mesmos, por quem? Beyoncé já vinha fazendo uma transição em seu trabalho e transformando seus clipes em pequenos filmes, então, não podemos falar que a estética madura que apresenta nessa obra é uma surpresa. O filme pode ser considerado um grande videoclipe que aborda as principais questões da história a partir das letras das músicas e do visual suntuoso que constrói. Tudo parece (e deve ter sido) minimamente calculado, sem que tenhamos uma impressão de frieza. Muito pelo contrário.
Ainda que os diálogos sejam poucos, conseguimos a partir das danças e das músicas entrar em um mundo de um Simba humano e negro. O que é um desafio pensando que essa é a estreia de Beyoncé como diretora de filmes ficcionais. Coloco aqui estreia, pois é bem diferente de “Homecoming” (2019) no qual parte de ou gera um show. Aqui ela se aproxima de uma narrativa fílmica própria bem interessante e o filme anterior, apesar de ser igualmente impressionante, aparece como um documentário do processo. Aliás, suas duas filhas Blue Ivy e Rumi Carter também surgem em “Black is King” desenvoltas e podem seguir a carreira dos pais, caso o queiram.
Com o musical, que chegará ao Brasil junto com o serviço de streaming Disney+, a artista coloca de vez seu nome entre um dos mais importantes da cultura negra mundial. “Nós nascemos reis“, e ela sabe disso.
Assista ao trailer: