Sinopse: Anos 1960. Boca de Ouro (Marcos Palmeira) é um criminoso que, ainda bebê, foi abandonado pela mãe, a líder de uma quadrilha de tráfico de drogas, no banheiro de uma gafieira. Ao crescer ele manda arrancar todos os seus dentes e colocar no lugar outros feitos de ouro. Ele também cultiva o sonho de ser enterrado num caixão de ouro. Designado para descobrir a verdadeira história do marginal, o repórter Caveirinha decide entrevistar sua ex-amante, que conta diferentes versões da vida do bicheiro.
Direção: Daniel Filho
Título Original: Boca de Ouro (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 33min
País: Brasil
Bicho que te Mordeu
“Boca de Ouro“, que chegou essa semana no serviço de streaming do Telecine Play, nos leva de volta ao Rio de Janeiro popularizado por Nelson Rodrigues. A adaptação da peça do dramaturgo dirigida por Daniel Filho (refilmando Nelson Pereira dos Santos, que lançou seu versão estrelada por Jece Valadão em 1963) se mantém fiel a uma zona norte malandra, machista, infiel e objeto de cobiça da hipócrita elite carioca, que ali se realiza.
A estrutura teatral em três atos também permanece. Caveirinha (o excelente Silvio Guindane) é um jornalista que tenta entender quem foi o Boca de Ouro, grande bicheiro de Madureira, interpretado por Marcos Palmeira e que acabara de ser assassinado. Ele, então, vai à casa de Guigui (Malu Mader), amante e assistente no escritório de contravenção do morto. A mulher entregará três versões sobre o último dia do protagonista – e o grande interesse aqui é olhar as motivações para as releituras da própria entrevistada.
Daniel Filho se entregou de vez ao cinema depois do sucesso de “A Partilha” (2001) e “Se Eu Fosse Você” (2006). Em “Boca de Ouro“, o cineasta propõe uma convenção de estilo que não se mantém. Traz um clima noir na prólogo e no epílogo (o qual faz uma participação especial). A fotografia em preto e branco aplica dois filtros, um mais acinzentado e o outro dourado, na cena em que se justifica o apelido do contraventor. Mais do que isso, Daniel quer, nos primeiros minutos, refletir o dinamismo do texto ligeiro originalmente concebido, modernizando as representações. Faz isso apenas no uso da câmera, já que a ambientação da obra se entrega totalmente a uma reconstituição da época, tanto na imagem quanto na temática. Essa câmera nervosa, contudo, não se mantém – com o passar do primeiro ato encontramos o tradicionalismo comum de uma produção mainstream da Globo Filmes.
Há quem lamente a ausência de atualização da narrativa no longa-metragem. Uma transposição muito bem feita com a obra de Clarice Lispector, “O Livro dos Prazeres” (2020), por exemplo. Contudo, essa perspectiva histórica soa mais do que uma escolha – e sim uma imposição. Aquele Rio de Janeiro não existe mais em relação aos personagens criados na literatura rodriguiana. As dinâmicas da sociedade se alteraram, principalmente em relação ao crime e à contravenção. A série documental “Doutor Castor” (2021), que a Apostila de Cinema também escreveu sobre, já tratava dessa profissionalização e do fim de uma era baseada em uma figura que transita entre a violência e o folclore.
Nessa quebra-cabeça kaneano promovido pelo jornalista, a condução é toda de Guigui. Projetamos a verdade na primeira versão, que se altera quando ela recebe a informação principal: Boca de Ouro está morto. O nível de alívio e de raiva da personagem de Malu Mader não se permite ser medido, o que torna a versão do segundo ato ainda mais intrigante. Com isso, o que seria uma reportagem feita sob encomenda para um dos clássicos tabloides sensacionalistas e sanguinolentos que circulam pelas zonas periféricas da cidade, se transforma em uma investigação informal. O brilhantismo do texto de Nelson Rodrigues é que ele estende essa nova possibilidade de construção de uma história ao próprio biografado.
São duas buscas por uma narrativa de redenção, de Guigui e de Boca de Ouro. Isso fica nítido na cena que conta com a participação da grande Léa Garcia, em que o protagonista tenta entender melhor sua origem e o abandono pela própria mãe. É como se o passado fosse uma forma de anistia de nossas condutas, de perdão prévio de nossos pecados. É um rápido giro de chave de humanização do personagem que sente prazer em ver os outros se humilhando por dinheiro, enquanto ele mesmo enriquece (talvez hoje deveríamos transportar essa figura do bicheiro para apresentador de programa de auditório).
A versão final de Guigui é feita com uma motivação extra, a de “agradar” o marido. O filme, como era de se esperar, é recheado de gatilhos de misoginia e representações objetificantes, devemos dizer totalmente coerentes com a trama. “Boca de Ouro” é um Corleone Tropical (ou tropicalista, nas falas de uma mulher em certo diálogo) que, na verdade, tenta uma busca por outra redenção, a espiritual, quando vê a morte se aproximar perigosamente. Um aspecto que o longa-metragem de Daniel Filho evita desenvolver, surge na parte final de forma pouco articulada – desperdiçada em conjunto com o abandono de proposta de quem exagerou na aplicação de um olhar romântico sobre seu cinema e trocou o choque do que seria uma forte cena final por um epílogo noir reducionista e pouco interessante.
Veja o Trailer: