Sinopse: Rayane (Rayane do Amaral) e Ygor (Ygor Manoel) são duas crianças deixadas na porta de uma casa de família de classe média-alta na zona sul do Rio de Janeiro. Eles só sabem que o nome de sua mãe é Ana e que moram em Campo Grande, bairro no outro extremo da cidade. Regina (Carla Ribas) e sua filha Lila (Julia Bernat) tentarão ajudá-los, seja por um abrigo de assistência ao menor, seja encontrando a origem familiar dos irmãos.
Direção: Sandra Kogut
Título Original: Campo Grande (2015)
Gênero: Drama
Duração: 1h 48min
País: Brasil
Bodes e Pianos na Sala
O terceiro longa-metragem de Sandra Kogut, “Campo Grande“, saiu vencedor do prêmio de melhor edição do Festival do Rio de 2015 – trabalho do experiente Sérgio Mekler. A montagem da obra diz muito sobre a visão da cineasta, que desde “Um Passaporte Húngaro” se pauta pela pessoalidade, mesmo em uma narrativa mais tradicional. Ela demonstra isso de algumas formas nesse filme e uma delas é na preocupação constante em mostrar as reações dos irmãos Rayane (Rayane do Amaral) e Ygor (Ygor Manoel), principalmente na sequência inicial – quando o desconhecimento de sua trajetória é compartilhada pelo público com Regina (Carla Ribas) e sua filha Lila (Julia Bernat).
No documentário em primeira pessoa de 2001, chamamos a atenção pela opção de Kogut por fechar a imagem nos entrevistados, boa parte deles nutrindo relação familiar com a cineasta. Há uma predileção por focar nas pessoas, ignorando ao máximo as representações locais, o que já não é identificado em “Campo Grande”. Todavia, as próprias escolhas do que representar já diz muito do olhar da diretora, que sempre que tira a imagens dos irmãos Rayane e Ygor na cena inicial, por exemplo, desloca todo o esforço para caracterizar a família de classe média-alta que está ali lidando com a situação. A dinâmica familiar entre mãe e filha tem como elementos paralelos uma dispensa cheia, uma funcionária para as tarefas domésticas, um zelador prestativo e um piano na sala.
Sempre acreditei que ter um piano na sala era um símbolo elitizante. Não no sentido meramente pejorativo da palavra, de quem faz parte de um grupo abastado que – supostamente – é menos sensível aos grandes problemas da sociedade. A elite pode ser intelectual ou artística, por que não? Ocorre que, ter um piano na sala, salvo raras exceções, demanda uma grande propriedade (você precisa de espaço sobrando, já que o piano não é pequeno) e um interesse particular em possuir esse bem. Interessante que, revistar “Campo Grande” menos de cinco anos depois de seu lançamento, deveria provocar um debate acerca da suposta negligência parental da mãe de Rayane e Ygor ou até mesmo um paralelo sobre a obra ultrarrealista “Projeto Flórida” (2017) de Sean Baker.
Porém, o que provoca mais na obra é esse olhar de Kogut, sobre bodes e pianos na sala da família da zona sul do Rio de Janeiro. Regina é uma mãe que tenta não demonstrar sofrer de Síndrome do Ninho Vazio (que Gustavo Pizzi muito bem sobre trabalhar em “Benzinho” de 2018), mas não consegue sentir uma empatia suficiente para humanizar seu manejo na crise que lhe caiu no colo. As crianças percebem que, de fato, não há ninguém realmente interessado em resolver seus problemas e, do alto de seus menos de dez anos de idade, já se articulam para não deixarem o mundo esmagá-los. Julia Bernat compõe muito bem uma Lila, tão indiferente quanto enfadonha – sendo fundamental a cena em que o piano é usado.
Visto sob o ponto territorial, “Campo Grande” nada mais é do que um longo ritual exotista, que concede pouco espaço para a real inserção de um estrangeiro (no caso, Regina) em um local que, vejam só, fica no mesmo município em que vive. Kogut explora essa “aventura” de atravessar a Avenida Brasil e é quase etnográfica ao mostrar porcos andando nas ruas, por vezes não asfaltada, do bairro de quase 350 mil habitantes localizado na zona oeste carioca. Não há uma busca por traçar grandes desdobramentos no que seria um intercâmbio cultural parecido com o da Dora (Fernanda Montenegro) de “Central do Brasil” (1998) ao cruzar o país na busca do pai de Josué (Vinícius de Oliveira).
Mais do que aplicar seu próprio olhar, Sandra Kogut traz uma elite que lida com os problemas até a página dois. Que traveste qualquer nova experiência de aventura para justificar argumentos que o mantém em sua própria bolha. Há um embate no espectador, que pode duvidar das intenções de uma narrativa travada e uma contemplação excessiva quando a ação sai do bairro dito nobre do Rio de Janeiro. “Campo Grande” é próximo do real por ter a mesma letargia e incipiência que as atitudes da protagonista Regina, que passou a vida sem precisar lidar com seus bodes e pianos na sala.
Aqui é a Olivia Dias, gostei muito do seu artigo tem muito
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