Sinopse: Em “Caros Camaradas! – Trabalhadores em Luta”, Lyudmila é uma executiva e devota do Partido Comunista, que lutou na Segunda Guerra Mundial pela ideologia de Stalin. Certa de que seu trabalho criará uma sociedade comunista, a mulher detesta qualquer sentimento antissoviético. Durante uma greve, Lyudmila testemunhou trabalhadores sendo baleados por ordem do governo, que busca encobrir greves trabalhistas em massa. Após o banho de sangue, quando os sobreviventes fogem da praça, Lyudmila percebe que sua filha desapareceu. Uma fenda aberta se abre em sua visão de mundo.
Direção: Andrey Konchalovskiy
Título Original: Дорогие товарищи! | Dorogie tovarishchi (2020)
Gênero: Drama Histórico
Duração: 2h 1min
País: Rússia
A Mão que Faz a Bomba
É até difícil criar título para uma leitura tão direta quanto “Caros Camaradas! – Trabalhadores em Luta“, que inicia sua trajetória pelo circuito brasileiro em apresentação especial no Festival do Rio 2021. Talvez por isso nem soe estranho a frase que abre o samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel em 1996 em uma produção russa sobre um período-chave do regime soviético do século XX. O universalismo da obra nos leva a um questionamento digno do dilema “Criador e Criatura“, ou da aparente conflito entre pessoal e profissional, ou o que você acredita com aquilo que o destino te traz. O que é capaz de fazer você questionar sua ideologia? Há algo “certo” para ser escolhido quando, do outro lado, está uma pessoa que você ama?
Este é o grande arco dramático de Lyuda (Yuliya Vysotskaya), uma funcionária do Partido Comunista fiel aos seus princípios. Com a morte de Josef Stalin no início da década de 1950, a União Soviética vivia tempos duros. O aumentos do custo de vida e uma guinada um pouco mais democrática na sociedade trouxe uma mistura bombástica: salários cortados, menos benefícios da cota de alimentos de cada família e uma geração que começa a ganhar voz com um distanciamento da Revolução. Entre elas a jovem Svetka (Yuliya Burova), filha da protagonista, que questiona o Socialismo aplicado no seu país. Casa de ferreiro, espeto de pau, você deve estar pensando. Todavia, o diretor veterano e múltiplo vencedor do Festival de Veneza, Andrey Konchalovskiy (também roteirista, ao lado de Elena Kiseleva) opta por um drama político quase todo o tempo – levando a uma parte final potente quando os laços familiares se tornam fundamentais para a emoção.
Uma narrativa um pouco parecida com “Quo Vadis, Aida?” (2020) – também presente no Festival do Rio – e que dificultou uma eventual indicação de “Caros Camaradas! – Trabalhadores em Luta” ao Oscar de melhor filme internacional, apesar do Grande Prêmio do Júri da mostra italiana já citada. Tudo o que envolve o longa-metragem dirigida por Jasmila Zbanic, sobre uma tradutora que precisa se dividir entre o desempenho de sua função e a ajuda à família quando o Exército sérvio assume a Bósnia é melhor dilapidado. Aqui temos uma trama direta sobre a reação da KGB e das forças armadas soviéticas a uma insurgência uma cidade do interior. O estopim é uma greve de trabalhadores que se transforma em um massacre quando atiradores de elite abrem fogo em meio à praça pública.
A fotografia em preto e branco permite ampliar, como sempre, a ideia de banho de sangue pelo qual o povo sofreu. O cineasta busca uma estética clássica, como na sequência em que uma reunião de militares se inicia com uma câmera posicionada na diagonal, por cima dos ombros do agente principal da cena. É nela que o General responsável pela missão se nega a distribuir munição para a tropa, alegando que é ilegal (e errado) responder com bala a uma manifestação popular. Quando sai de sua trama política, o filme apresenta Lyuda como uma mulher pragmática, que evita atos de vaidade e capaz de afastar o lado pessoal quando o Partido Comunista precisa dela. Acaba se tornando uma ferramenta de injustiça e, ao mesmo tempo, parte de uma das vítimas quando sua filha desaparece.
Svetka representa uma geração com novas demandas, com influência direta das falas de Nikita Khrushchov no 20º Congresso do Partido Comunista em 1956 e a interpretação dada a partir delas, fato histórico que chega a ser diretamente mencionado. Ele, que dois anos depois se tornaria Primeiro Ministro da União Soviética, denunciou o regime de exceção e os desrespeitos às garantias fundamentais promovidas por Stálin. Já a mãe de Svetka é reflexo de um Estado punitivista e que vê qualquer opinião contrária ao regime como um risco de ruptura. Acaba se tornando uma voz importante quando da chegada dos agentes na cidade, que usarão até mesmo a condição de ex-presidiários ou o hábito de beber de parte dos grevistas para deslegitimar a paralisação dos trabalhos por melhores condições.
Aos poucos, o filme vai se tornando mais denso, fazendo que com sua protagonista vivencie e entenda a urgência do seu drama pessoal. Na busca em prisões, necrotérios e até em locais de desova – algo típico de ditaduras veladas, como ocorreu no Brasil e foi trazido pelo documentário “Pastor Cláudio” (2017) de Beth Formaggini, “Caros Camaradas! – Trabalhadores em Luta” nos lembra sobre a necessidade de um olhar crítico para as atitudes de indivíduos e grupos. Como o poder sobe à cabeça de alguns, representados por aqueles que desejam manter privilégios, mesmo em um sociedade que busca a igualdade acima de tudo. Por fim, o encontro com a sua verdade como forma de salvar-se, sem deixar de acreditar em uma comunidade justa e igualitária.
Veja o Trailer: