Sinopse: A trajetória de Cartola, um dos mais importantes músicos do samba brasileiro. O filme reflete sobre a construção da memória do país.
Direção: Lírio Ferreira e Hilton Lacerda
Título Original: Cartola – Música para os Olhos (2007)
Gênero: Documentário | Musical
Duração: 1h 28min
País: Brasil
Nunca é Tarde, Amor
Após dois trabalhos de ficção que tinha a produção e o resgate de memórias como mote, Lírio Ferreira dirige, ao lado de Hilton Lacerda, seu primeiro longa-metragem documental: “Cartola – Música para os Olhos“. Até então roteirista de algumas das grandes produções do cinema recifense da Retomada, como “Baile Perfumado” (1996), “Amarelo Manga” (2002) – além do único trabalho de direção de Matheus Nachtergaele, “A Festa da Menina Morta” (2008) – o Hilton começava a se aventurar na função, que o faria dirigir um clássico para chamar de seu na década seguinte, com “Tatuagem” (2013).
A ponte aérea entre Pernambuco e Rio de Janeiro fica marcada logo na aterrisagem. Em um arquivo de áudio, a voz de Cartola questiona qual seria a melhor forma de contar a própria história, enquanto imagens de seu velório e enterro ganham a tela. O filme traz elementos dramatizados, como um Angenor criança na estação de trem (moderna) e imagens e fotografias históricas. Contudo, optando por manter certa cronologia, Ferreira e Lacerda pensam o documentário como uma espécie de antologia musical. Talvez menos intensa e explorada do que a obra seguinte de Lírio, “O Homem que Engarrafava Nuvens” (2009), mas o suficiente para irmos além da visão panorâmica.
Não que o conjunto que forma “Cartola – Música para os Olhos” não tenha esse viés. Porém, ao retratar uma das maiores personalidades da história do samba, um dos compositores mais talentosos e com a poesia doce de imortalidade inquestionável, os cineastas demonstram consciência de que há um material bruto capaz de tornar esse arco bem definido da historiografia algo para além do didatismo e da curiosidade. No mais, falar da passagem de Cartola por este plano é atravessar o Rio de Janeiro do século XX, um encontro ancestral a partir do território que o cinema da Retomada encontrou como missão, um desdobramento a partir da provocação do Cinema Novo.
Cada bloco deste compêndio que o filme se transforma seria capaz de formar um bom longa-metragem. Da transformação das alianças comunitárias para o Carnaval conhecida como Rancho (e o protagonista se vinculada ao dos Arrepiados, onde o pai tocava cavaquinho e usava as cores verde e rosa no bairro de Laranjeiras) à internacionalização do ritmo. Elementos que tratamos em outras críticas por aqui, principalmente envolvendo nosso especial da “folia que não existiu” de 2021 – inaugurada com uma entrevista com o professor e pesquisador Edson Farias. Há uma contextualização histórica que se impõe, não passar por Donga e “Pelo Telefone”, por exemplo, é quase impossível (e falamos disso em nosso texto sobre “Noel – Poeta da Vila” de 2006).
Assista nossa conversa com Edson Farias:
“Cartola – Música para os Olhos” também faz uma boa composição com o Cinema Brasileiro de todas as épocas – algo que traz uma quebra narrativa em “Baile Perfumado” e funciona bem aqui. De “Orfeu Negro” (1959) a “Ganga Zumba” (1963), há um resgate deste imaginário popular a partir da construção de imagens – e a de Cartola é icônica, quem vê sua estátua na entrada da Mangueira não tem dúvidas de quem é. Ao transformar o samba em escola e contribuir para a quebra do estereótipo de incivilidade, aquela geração confiou em um reconhecimento que não veio da forma imaginada e acabou precisando ser resgatada. Em relação a este ponto, há um pouco de relação entre o que Sergio Porto fez com o biografado e a maneira como Adoniran Barbosa renasceu na gravação do álbum com Elis Regina.
Neste caso, as formas de representação e montagem mostram que 2007 já não é tão próximo assim. “Adoniran – Meu Nome é João Rubinato” (2018), à luz do que se discute hoje na sociedade brasileira, encontra uma leitura mais crítica a partir de contrapontos bem menos festivos e efusivos. Isto não tira o vigor de uma produção como esta, mas hoje sentimos uma carência em olhares sobre aqueles que estavam próximos à Cartola, principalmente Deolinda de Oliveira e Dona Zica, suas companheiras ao longo da vida. Os diretores suprem lacunas de certos períodos com uma dose poética, como quando um fase no ostracismo se reflete em uma passagem por um túnel que liga as zonas sul e norte do Rio de Janeiro.
O documentário, então, traz outro assunto a partir da “venda” de letras e como os direitos autorais desrespeitados (e desregulados) faziam com que autoridades da música precisassem se desdobrar em trabalhos e empreendimentos que o fizessem se manter sem depender do dinheiro de sua arte. Ou seja, novamente sem didatismo, nos traz questões que superam o passado, reforçando o que a cultura já sofreu e o que parece em vias de sofrer diante do desmonte atual. Em questões pontuais, o auxílio de vozes como Hermano Vianna e Nelson Motta aparecem, mas impressiona como o filme não perde o foco na potência da musica.
Neste quesito, o desfile de nomes é supercampeão, tal qual a Mangueira de 1984 (ou o Vasco de 1958). De Moreira da Silva a Nelson Sargento, que nos deixou recentemente por culpa desta pandemia que tantos levou sem que pudéssemos sequer refletir e homenagear sobre seus legados. Um olhar sobre a cidade que traz a Catete do início do século, a Lapa de Madame Satã e da casa do compositor na Rua das Andradas (destruída para virar buraco de metrô, na incompreensível tradição carioca de dilapidar seu patrimônio histórico e aterrar suas belezas naturais). Deixar de ser capital federal, por exemplo, traz um pouco a sensação de alma se esvaindo em um reflexo cultural que trouxe a bossa nova que – apesar de se referenciar no samba – é uma outra coisa. Outra manifestação cultura. Outro assunto. Outro Rio de Janeiro. Outra vida que também não existe mais.
Em uma difícil missão, “Cartola – Música para os Olhos” reúne âncoras que vão de Carmen Miranda a Orson Welles, mostrando que a arte é composta por esses astros que orbitam em torno dos outros, criando um universo próprio. Isso pelo olhar ao mesmo tempo apaixonado, reverencial e afastado de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, mestres em criar personagens que cumprem esta função em narrativas de afetos e reencontros.
Conseguem dimensionar o tamanho de seu protagonista para aqueles que acham que encontrariam um punhado de músicas e o significado de um apelido (que o levava a fugir da Mangueira no Carnaval). Conseguem emocionar ao saber usar a fonte primária, como a inesquecível apresentação de “O Mundo é um Moinho” para o pai, no quintal da casa em Bento Ribeiro. Conseguem unir gerações, das que já se foram àquelas que ainda virão – em um roda de sambas que se negam a parar quando outro dia nasce.
Veja o Trailer: