Sinopse: Sônia (Suzana Pires) e Hugo (Marcello Novaes) são da alta burguesia carioca e levam uma vida bastante confortável. Aos poucos vão à falência, mas ninguém sabe de seus problemas financeiros, nem mesmo o filho Jean (Thales Cavalcanti), que faz de tudo para se desvencilhar dos pais superprotetores. Para se manter, o casal corta despesas e ele, que só se preocupava com garotas e vestibular, enfrenta pela primeira vez a realidade.
Direção: Fellipe Gamarano Barbosa
Título Original: Casa Grande (2014)
Gênero: Drama
Duração: 1h 57min
País: Brasil
Um Verão Cheio de Andorinhas
“Casa Grande” chegou no início de agosto de 2020 na plataforma Netflix como mais uma opção do cinema brasileiro contemporâneo – até porque o serviço de streaming tem predileção por produções da última década, um catálogo bastante engessado. Quem bate o olho no que circunda a obra, encontra imediata identificação com o, ainda inédito no circuito comercial, longa-metragem mais recente de Sandra Kogut, “Três Verões“. Que, por sinal, já parecia dialogar com “Que Horas Ela Volta?” (2015), de Anna Muylaert.
Essas sensações e correlações fazem sentido porque estamos diante de manifestações artísticas que, sem demérito nessa assertiva, são produtos da elite feitos para si – ou para quem tem sobre ela certa visão crítica. Debater o filme de Fellipe Gamarano Barbosa, entretanto, é uma tarefa bem mais fácil porque o cineasta, ao meu ver de forma brilhante, escracha (para usar um termo de um falecido apresentador de TV pouco consumido pela elite) o que outros deixam no campo das intenções. Ao escrachar, corre-se um grande risco de ser ofensivo para um público – pois parece, contudo, se tratar de um público que nunca foi da obra.
Há várias pistas de que estamos diante de um grande deboche, a começar pela carreira posterior do diretor, que lançou em 2017 “Gabriel e a Montanha” (bem recebido na rota alternativa do Festival de Cannes e vencedor da Mostra São Paulo) e em 2018 “Domingo“, que conta no elenco com Isamel Caneppele, que já passou aqui pela Apostila de Cinema nos últimos dias com “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009). É um cinema de exorcização dos demônios da elite brasileira, um gênero que parece não sair de moda porque as reproduções de racismo, misoginia, intolerância e preconceito se renovam a cada novo momento do país, a cada nova crise econômica.
A abertura do longa-metragem já é caricata. Uma interminável cena em que a casa é mostrada em plano geral, enquanto a trilha sonora parece nos transportar para alguma obra do final dos anos 1970, quando se reciclavam as crônicas de Nelson Rodrigues para expor a hipocrisia do rico brasileiro – com muito sexo para garantir a audiência, claro. Somos transportados, entretanto, para uma elite moderna, com sistema de som e de ar condicionado centrais e sensores de movimento que captam tudo – exceto as fugidas do filho Jean (Thales Cavalcanti), adolescente no último ano do ensino médio no Colégio São Bento (um dos mais caros do Rio de Janeiro), que gosta de passar as madrugadas nas dependências das funcionárias tentando sarrar uma delas.
Quando falamos dos riscos de representação, essa abordagem se mostra um exemplo. Além das reproduções de todos os defeitos dos endinheirados na nação já citadas, Barbosa pinta “Casa Grande” com tintas fortes de clichês. Eles se valem para subversões e redenções? Talvez, mas isso dá ao olhar do espectador uma força fundamental e é provável que, no caminho, alguns deles não se sintam confortáveis – enquanto outros se lambuzem e rolem na grama com os próprios demônios que se quer exorcizar aqui. O cineasta faz questão de dar nome aos bois a todo o instante. Não há nada fictício, o colégio é nominalmente mencionado, a Fosfobox – casa noturna que faz parte da narrativa – também é real, além dos trajetos e das locações. O filme quer deixar bem claro que fala de uma família do Itanhangá, nas proximidades da Barra da Tijuca e explora geograficamente tudo o que lhe convém.
Não há como afastar experiências pessoais porque “Casa Grande” é pensado e executado por um realizador de uma geração bem próxima a minha (são cinco anos de diferença de idade entre nós). Estou longe da criação nababesca e faraônica do garoto Jean, mas convivi com reproduções bem semelhantes àquelas – e morando bem perto dele. Frequentamos os mesmo lugares e nossas descobertas sobre o mundo real, o do transporte público, do trabalhador assalariador, aquele em que a utopia meritocrática se esvai, são quase idênticas – com grandes diferenças nos fatos geradores e nos desdobramentos. Pensar esses dois microcosmos parecidos – o ali representado e o meu – é um exercício interessante, mesmo que já envelhecido para minhas pretensões. É como reler “O Apanhador no Campo de Centeio” e não ter mais quinze anos de idade – mas querer ser arrebatado por essa arte de maneira igual.
Essa maneira de me relacionar com a obra talvez me torne mais condescendente e veja no trabalho do diretor um viés de rompimento, de ir às favas com tudo o que ficou entalado na garganta. Curiosamente, o debate em relação a cotas é mostrado como se a história ali contada acontecesse no primeiro ano de implementação da política afirmativa na UERJ (Universidade do Rio de Janeiro), que foi o ano em que prestei vestibular. Todas as questões perpassadas ali fizeram parte da minha rotina desde que tinha a idade do protagonista. Isso não torna “Casa Grande” o conto de fadas ou o épico de descoberta do jovem burguês definitivo e irretocável. É preciso balancear que a visão “de cima para cima” do filme é passível de interpretações bem complexas. A herança escravocrata no discurso já foi (e segue sendo) usada como “desculpa” para muitas atitudes e por vezes criações audiovisuais se valeram mais como argumentos do que como crítica.
No final das contas, o longa-metragem consegue encontrar caminhos para deixar clara sua proposta. Verbaliza com personagens que surgem como embaixadores do bom senso, como o caso da namorada de Jean. Deixou de ser caricato nos impropérios proferidos pelos pais do protagonista, em relação aos seus preconceitos, porque a sociedade testemunhou a reafirmação deles nos últimos anos. Não nos choca mais o que ouvimos ali, já não abalava tanto em 2014, por sinal. O exercício de poder dos patrões ricos, que entendem serem, de certa maneira, proprietários dos seus funcionários, sempre existiu. Troca-se a moradia por uma ausência total de intimidade e a emancipação e reforço de uma legislação trabalhista foram fundamentais para esse castelo de areia (tão frágil quanto o capital especulativo com o qual Hugo, personagem de Marcello Novaes, construiu sua riqueza) caísse em um curto período do Brasil – e mesmo assim de maneira bem limitada. Hoje o lado mais fraco da corda está de novo arrebentado e tudo virou pó para ele.
Só que “Casa Grande” não é uma crítica travestida de narrativa e sim o contrário. É uma tentativa de reescrever a realidade com doses de cronismo de mídia hegemônica. Bem mais sincera do que os verões de Kogut, que imaginou um mundo sem patrões, mas ainda assim competindo por espaço com formas mais modernas e eficientes de se trazer à superfície as questões propostas. A obra de Fellipe Gamarano Barbosa (no início dos créditos dedicada à sua família) se entende com prazo de validade, sabendo que a fantasia ali formatada só chega a certo ponto. Visto daqui de cima, de quem já tem o dobro da idade de Jean, gostaria de só dizer a ele que o rompimento precisa ser o mais rápido possível – porque quanto mais perto dessas andorinhas ele voar, mais verões temperados com reacionarismo serão por ele vividos.