Sinopse: Na noite de 19 de agosto de 1978, quatro homens incendiaram o Cinema Rex, na cidade de Abadan, matando mais de 400 pessoas que assistiam a uma projeção de “The Deer”, de Masoud Kimiai. Marco da revolta popular que meses depois derrubaria o governo monárquico, o episódio traumático é revisitado em um jogo ficcional labiríntico que imagina a repetição do crime na sala escura. Ao vislumbrar o risco do infinito na história iraniana, “Crime Culposo” circunscreve o cinema como um protagonista ao mesmo tempo incontornável e desconcertante.
Direção: Shahram Mokri
Título Original: جنایت بیدقت (2021)
Gênero: Drama
Duração: 2h 14min
País: Irã
Olhar Composto
O cinema iraniano pré-revolução de 1979 já foi assunto aqui na Apostila de Cinema durante a cobertura do Festival É Tudo Verdade do ano passado. Por sinal, o período de quase trinta anos que o antecederam, nos documentários “Golpe 53“, “O Rei Nu” e, sobretudo “Filmfarsi“. Esse último traça um ótimo panorama de uma indústria que usava estereótipos masculinos e narrativas de redenção como parte de sua atratividade – e seria ótimo que ela fosse disponibilizado em alguma plataforma pela valiosa carga histórica. Porém, nada se compara como exercício metalinguístico de “Crime Culposo“, parte da mostra Novos Olhares do 10º Olhar de Cinema.
O próprio diretor Shahram Mokri admite que há uma dificuldade de percepção para todos aqueles que não conhecem a história de seu país. Suas falas na conversa com Leonardo Bomfim para o canal oficial do festival no You Tube (e que você assiste ao final da crítica), auxiliam na forma como o realizador pensou tais dinâmicas. Com a publicação do texto após a entrega dos prêmios, já sabemos que o longa-metragem foi o grande vencedor em seu recorte curatorial. Em um ano de obras irretocáveis, a justiça seria feita caso os troféus chegassem às mãos de qualquer um dos filmes. Porém, o registro dessa lembrança à ousadia de Mokri ficará marcada na edição de 2021.
Em suma, a base da narrativa nos ambienta em uma época em que vários cinemas iranianos eram incendiados. Uma atividade cultural muito popular no final dos anos 70 – devido à qualidade do audiovisual local – as engrenagens que atacavam possíveis levantes socialistas operavam para levar o medo para esses espaços. Em uma das salas, o Cine Rex, a maior tragédia dentre elas. Presos pela porta de saída de emergência que abria para dentro ao invés de para fora, centenas de cidadãos morreram na noite de 19 de agosto de 1978.
Veja o Trailer:
“Crime Culposo”, então, opera por três lógicas. A de uma nova geração que espera uma sessão no cinema, a dos terroristas que se organizam para operar o ataque e a de militares em meio a uma crise de mísseis. Elas se sobrepõem e atravessam a ideia de temporalidade, por vezes as providências do ataque surgem na tela, em uma conceito mais amplo de reconstituição. Ao mesmo tempo, um toque de investigação cumpre a função documental da obra – como o fato de nenhum dos funcionários do Rex constar na lista das mais de quatrocentas vítimas.
Não sei até que ponto o cineasta recupera representações do passado, dialoga com o presente ou projeta um futuro em que um fato como esse seja possível. O dono do cinema, por exemplo, aparece como um capitalista agressivo, optando por aumentar ao máximo a capacidade do espaço – a ponto de tirar o conforto dos mais altos – em resposta à proibição do governo de aumentar os valores dos ingressos. Mesmo sem ter o controle sobre todos os elementos, a grande mensagem do filme se ergue com naturalidade: a de que as tragédias são cíclicas.
Já o termo culposo se relaciona aos objetivos do grupo de incendiários. Com o projeto de “dar um susto” na plateia e contribuir para o clima de instabilidade no país, eles se tornaram cruéis assassinos, mostrando a linha tênue das possíveis consequências de certos atos. O diretor, porém, traz uma perspectiva humanista sobre os personagens e a montagem auxilia nessa percepção de que todos – mesmo em momentos distintos do país – fazem parte da mesma cultura.
Nessa forma lúdica de revisitar o passado, de transpor para o presente ou de atingir uma meta-temporalidade não especificada, “Crime Culposo” foi um choque de narrativa em meio a tantas obras que vinculam memória e sensorialidade da mostra. Usando a popularidade e a força política da arte que tanto amamos de pano de fundo, só poderia ser classificada como uma confusão irresistível aos nosso olhar.
Assista à conversa entre Leonardo Bomfim e Shahram Mokri sobre “Crime Culposo”: