Sinopse: “Destacamento Blood” é a história de quatro veteranos de guerra afro-americanos que voltam ao Vietnã à procura dos restos mortais de seu comandante e de um tesouro enterrado.
Direção: Spike Lee
Título Original: Da 5 Bloods (2020)
Gênero: Aventura | Guerra | Drama
Duração: 2h 35min
País: EUA
As Confluências da Arte Audiovisual
Em “Destacamento Blood”, o diretor Spike Lee consegue atacar em duas frentes das mais interessantes: uma atualização de narrativa sem deixar de ser referencial com as formas de representação usadas pelo cinema em outros tempos. Ele faz isso a partir da Guerra do Vietnã, que Hollywood nos traz em ondas – e falamos um pouco delas em nossa crítica de “Judas e o Messias Negro” (2021). Porém, há algumas escolhas aqui que o tornam menos arrebatador e até original do que sua obra-prima anterior, “Infiltrado na Klan” (2018).
Antes de falar de tudo de bom que temos no longa-metragem produzido pela Netflix – e que arrefeceu sua própria aposta na temporada de premiações – vale dizer que Lee parece ter mitigado sua autoria em prol desse objetivo. Uma perseguição comum na carreira de outros grandes cineastas, de Steven Spielberg a Martin Scorsese. A felicidade de seu prêmio como roteirista em 2019 é um indício da decepção de ver a injustificável vitória de “Green Book – O Guia” (2018) no mesmo ano. Com isso, há momentos que parece que o diretor quer escalonar a ação, quer retomar pontos para provar de forma irrefutável seu ponto.
Falando em provar um ponto, um dos grandes trabalhos de interpretação de 2020, provavelmente, não será reconhecido pela Academia: o Paul de Delroy Lindo. Demora para chegar nesse estágio da trama, mas quando ele encontra-se imbuído de vez em provar o seu ponto, sua atuação atinge o patamar de inesquecível. Como condutor da narrativa, ele é o veterano da guerra que lidera o grupo de quatro amigos (junto com sue filho David, vivido por Jonathan Majors). Eles viajam para Ho Chi Min (antiga Saigon) para refazer os passos de sua tropa. Querem reencontrar o corpo de Norman (o finado ator Chadwick Boseman) e mais um carregamento de barras de ouro enterrado por eles.
Spike Lee começa “Destacamento Blood” carregado na contextualização. Usa imagens de arquivo para mostrar como a sociedade norte-americana comprou a ideia de um conflito armado e de uma corrida espacial durante a Guerra Fria apenas para… provar um ponto. Em um ritmo lento, algumas falas perdem força, mas uma delas é emblemática: aqueles soldados estavam lutando em uma guerra que não era sua para defender direitos que eles não tinham. O recrutamento de jovens negros é desproporcional à sua população nos Estados Unidos. O governo faz isso a partir da promessa de ascensão, vendendo uma perspectiva que o próprio Estado renega. No fundo, uma nova forma de levá-los à morte.
Ao retornarem ao Vietnã, os personagens encontram um outro ambiente: globalizado, em que “Apocalypse Now” (1979) é o tema de uma festa. No caminho eles cruzarão com vietnamitas que possuem seus traumas, mas até aquele ponto compramos a ideia do prejuízo para os cidadãos norte-americanos. O diretor faz questão de qualificar desde cedo Paul enquanto eleitor de Donald Trump, com direito a boné “make America great again” e uso de sua imagem como militante qualificado da figura de extrema-direita.
Com isso, desdobramentos de personalidades podem ser afastados para que as referências audiovisuais se construam. Há espaço para quase tudo no longa-metragem: exército de um homem só, cena de tensão com os pés em uma mina, violência perturbadora com a morte no meio das matas do Vietnã, uso de drogas que despertam certas neuroses e traumas dos conflitos que imobilizam seus agentes.
Todas essas leituras, esses motes, fizeram parte do registro que o cinema fez daquela guerra. Aliar todas as possibilidades, que surgem em sequências carregadas de realismo, com a situação atual da sociedade dos Estados Unidos, é o grande destaque de “Destacamento Blood“. Uma premissa genial de um dos grandes realizadores do país nas últimas décadas e que emociona, ainda que moldada para agradar um tipo específico de plateia, aquela capaz de dar a ele uma estatueta de ouro que ele ainda não conquistou. Por sinal, a corrida por ouro e todas as possibilidades trágicas envolvidas, nos deu alguns dos grandes filmes de aventura da antiga Hollywood, como “O Tesouro de Sierra Madre” (1948), que deu a John Huston seus únicos dois Oscars, por direção e roteiro – e funciona bem aqui enquanto explorador de tensão.
Ou seja, talvez esse seja (ao lado de “O Irlandês“, de 2019) o melhor uso de algoritmos que a Netflix conseguirá nos entregar. Porque bebe na fonte do próprio cinema e é conduzida por grandes nomes da indústria. Ao tentar recontar várias histórias clássicas, Lee não consegue engendrá-las com tanta naturalidade. Apenas ancorado no trabalho de Lindo o longa-metragem ganha potência. Ao contrário de “Coringa” (2019) – que a Academia lotou de indicações ano passado – o rol de referências não soa forçado e nem mesmo ganha destaque na trama. É algo acessório, bem executado, ainda que deixe a sensação de abdicação de outros elementos.
A opção por manter o elenco veterano nas pequenas sequências do período da guerra também é uma escolha estética interessante, nos auxiliando na imersão sobre a guinada política do protagonista e a diferença de leituras dentro do grupo. Fica desde já a torcida pelo reconhecimento nesta categoria no SAG Awards que acontece em algumas semanas. A cena com Chadwick, claro, é muito tocante, ainda mais em um personagem que marcou seus colegas pela consciência e pelo discurso de controle de raiva. Enquanto jovens negros como ele morriam no Vietnã, outros seguiam o mesmo destino em seu próprio território. O silenciamento de líderes do movimento são parte importante e Lee nos entrega uma obra que faz jus a uma safra de produções que resgatam o tema.
Para aqueles que assistem com o objetivo de esvaziar a mente, é possível que “Destacamento Blood” dependa da relação direta com Paul. Somos movidos pela curiosidade de chegar às consequências de seus atos, apesar do terreno demorar a ser preparado para isso. Com um discurso cada vez mais confuso e comprovando que qualquer simbologia no debate político é bem mais complexa do que imaginamos, a lição que fica é de que qualquer solução na sociedade não é tão simples. Em muitos textos falamos do peso da política econômica que levou ao trumpismo. Não será aqui que estenderemos ao nosso país as questões, mas elas estão aqui pela Apostila de Cinema em outras análises. Porém, vivendo uma realidade de interações sociais tão complexas quanto a América, o recado a partir da figura de Delroy Lindo também soa emblemático.
Ou seja, talvez a mitigação de autoria seja motivada por muito mais do que ganhar prêmios. A comprovação de um ponto pelo cineasta supera a corrida do ouro de Hollywood. A confirmação vem sempre na troca do “a film by” por “a joint by” (uma articulação) nos créditos. Spike Lee recepciona o cinema enquanto construção coletiva, se vê como ferramenta de “Destacamento Blood“. Sabe, afinal, que tudo está conectado e que qualquer plataforma para romper (ou convidar a romper) a lógica de opressão é válida.
Veja o Trailer: