Leia crítica a entrevista sobre “Dora e Gabriel”, uma das estreias da semana.
Sinopse: No cento de São Paulo, um imigrante libanês há muitos anos no Brasil é assaltado e jogado no porta malas de seu próprio carro. Uma mulher, testemunha do acaso que passava pelo local, também é lançada no mesmo espaço. Sem nunca terem se visto na vida, os dois são obrigados a dividir o minúsculo ambiente sem saber por onde o automóvel circula.
Direção: Ugo Giorgetti
Título Original: Dora e Gabriel (2020)
Gênero: Thriller | Drama
Duração: 1h 25min
País: Brasil
A Morte Pulsante
Uma vez Einstein e Freud trocaram cartas em que discutiam a tendência humana em criar guerras para lutar e matar uns aos outros. Bom, em se tratando de duas das mentes mais privilegiadas do século XX o assunto não era tão simplista assim. Fato é que o psicanalista tratava do naturalismo na gênese violenta desses seres, gregários, sim, mas comandados pelo que ele chama de “pulsão de morte“. Até mesmo a escolha do verbete “pulsão” ao invés de “instinto” diz muita coisa – mas não mais desenvolveremos para que uma fita-banana sem precedente seja criada aqui.
“Dora e Gabriel” é um filme violento sem ser. É uma obra filosófica e instigante, mas permitindo que o espectador que ainda insiste em vincular uma sessão de cinema com entretenimento escapista garanta sua dose de… diversão. Esses devem vociferar pelo “final aberto” ou pela maneira como Ugo Giorgetti conduz o público para estudo de personagens que travam uma luta pela sobrevivência, sem saber ao certo como se deu esse risco. No porta-malas de um carro, Natalia Gonsales e Ary França dão vida a estranhos que precisam mediar suas diferenças por um objetivo urgente: sair daquele lugar.
Ele é um imigrante libanês, senhor veterano de guerra, algo que desperta certa xenofobia da moça no primeiro plano. Ela tem sua forma de ocupar o território urbano, mas é algo revelado tão a frente que não seria de bom tom mencionar (como diria um meme pandêmico). Por sinal, o longa-metragem parece pensado para registrar o tempo pelo qual foi lançado, de maneira premonitória. Na forma e no conteúdo. Sinal de que Giorgetti já se antecipa aos deserto de oportunidades que a indústria audiovisual pode virar na crise programada por um governo federal inimigo da Cultura.
Em entrevista à Apostila de Cinema, ele confirma que a narrativa de cenário único, baseada nos diálogos e na forma como os dois atores construirão “Dora e Gabriel”, é resultado dessa busca por algo sintético. E também mais alegórico, o que entra na seara do conteúdo. Aqui ele não tinha como saber que confinamento seria a palavra de ordem de 2020 e 2021, mas a Filosofia que o formou na juventude é capaz (sempre) de adaptar sua dialética a qualquer situação. Calhou de uma pandemia chegar e, mesmo assim, as subjetividades provocadas pelo filme permaneceram fortes.
Leia entrevista exclusiva com diretor e elenco de Dora e Gabriel.
Por sinal, a pulsão de morte de Freud se manifestou com força nos últimos tempos. Se o Brasil é uma sociedade violenta, que naturaliza eventos como o fato gerador do filme em programas de TV vespertinos, a ideia de que a vida seguirá por caminhos incontroláveis – e portanto, é melhor esgotá-la – ganhou uma proporção negacionista. Alheia a todo esse existencialismo, Dora é uma moça que mantém uma vigilância conformada dentro daquele veículo. Ela escuta Gabriel, tenta participar das maquinações da mente dele, mas quase como um ato reflexivo, de quem optou por ser massa de manobra para não se comprometer ou tornar a rotina ainda mais difícil. Pacifista, alguns definem os cidadãos desse país.
Até que o primeiro de alguns tiros é ouvido e a chave de Dora gira. Para aqueles que não esperam o pior, ou não lutam achando que basta aceitar um status para que ele não mude, a paz vira neurose assim que uma manifestação de guerra se apresenta. Enquanto isso, Gabriel permanece firme na missão que criou. É ele que irá adaptar dessa vez, não a si, aos seus planos de fuga. Por sinal, ontem mesmo aquele que deveria vender o sucesso de um país destruído já avisou: sempre pode piorar.
Ugo Giorgetti tinha pela frente uma execução difícil. Geralmente, filmes com essa proposta não colocam dois atores fisicamente em cena. Em “Enterrado Vivo” (2010) o personagem de Ryan Reynolds tem contato por telefone celular com o mundo exterior. Já na recente produção francesa “Oxigênio” (2021) a ficção científica é a base de uma operação extraterrestre de confinamento sufocante. Aqui ele precisa administrar bem a captação das imagens, precisa dar fluidez nos diálogos em mais de uma câmera, para nos permitir interagir com todas as partes do corpo de seus protagonistas.
No mais, usa o som e os diálogos para criar uma cidade que some no horizonte em nossa mente. Dá pistas pela música, em buracos em que pedaços do veículo conseguem ser percebidos e no mínimo de contato com os sequestradores. Com esse leque de possibilidades, ele tira sua dependência de um desses fatores, garantindo que “Dora e Gabriel” seja intrigante até o fim. Ou seria um novo começo? A conclusão nos confronta com o que há de mais assustador nas reflexões sobre a nossa existência: a de que todo o passado não altera o fato de que o futuro é um caderno em branco, com canetas de incertezas para colorir de pulsões de medo, ansiedade, prazer e morte o destino que nos aguarda.
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