Dora e Gabriel | Entrevista

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Seguindo Além dos Protocolos

Nesse ciclo de dias repetitivos, de uma pobreza estética e criativa que se tornou a rotina de uma pessoa em isolamento social, só há três cenários possíveis (além da pequena parcela da cidade que os separa): o supermercado, a farmácia e a padaria. Nesses dezoito meses, quase quinze foram dedicados à Apostila de Cinema, criada no final de maio de 2020 – pouco mais de sessenta dias depois do que imaginávamos ser uma quarentena.

Nesse tempo, cobrimos estreias e lançamentos em plataformas digitais (ou até mesmo dos cinemas, quando tivemos acesso ao conteúdo de forma remota), mas os festivais se transformaram no destaque de uma cobertura independente, sem lucro e com o objetivo de discutir alguns aspectos da sociedade através das imagens e seus realizadores. Participamos como credenciados ou de penetra mesmo, na ala virtual dedicada ao povão.

Em uma dessas coberturas invisíveis, em que nossos e-mails ficaram perdidos em algum spam ou foram ignorados pelo destinatário, conversamos – através da assessoria do projeto – com Ugo Giorgetti, que apresentava no É Tudo Verdade de 2021 o documentário “Paul Singer, uma Utopia Militante“. Lá ele falava do choque de ter que engavetar “Dora e Gabriel“, com data e programação quase fechadas no circuito comercial paulistano, por conta da pandemia.

Um cineasta que nunca se dobrou às intempéries, como ele bem mesmo disse na entrevista publicada há seis meses. Quando não havia política de incentivo e a produção audiovisual era uma área desértica, ele fez “Festa” (1989) e com ele ganhou o Festival de Gramado e deu ao ator Ary França um de seus primeiros papéis.

Quando as estações permitiam que uma história envolvendo o grande amor popular, o futebol, pudesse ser contada, ele nos deu “Boleiros: Era uma Vez o Futebol” (1998) no ciclo da Retomada. Ao longo das décadas, sua experiência no cinema, aliada à organização e a forma sintética de elaborar peças publicitárias, também lhe deu parceiros de confiança e um grupo de talentos que o faz seguir em frente.

Sem a exclusividade das salas que permitem a experiência coletiva, como ele lamenta por ser um “homem de cinema“, “Dora e Gabriel” chegou ao circuito e às plataformas digitais de locação.

O filme se passa no cento de São Paulo, onde um imigrante libanês há muitos anos no Brasil é assaltado e jogado no porta malas de seu próprio carro. Uma mulher, testemunha do acaso que passava pelo local, também é lançada no mesmo espaço. Sem nunca terem se visto na vida, os dois são obrigados a dividir o minúsculo ambiente sem saber por onde o automóvel circula.

Mais uma vez falamos com Ugo, que deixa claro que adaptar suas criações ao que há de possível não significa perda de qualidade técnica ou passar perrengue no set. Ao seu lado, dois protagonistas que mostram que o Teatro ainda é um celeiro a ser desbravado pelas outras linguagens. Tanto Natalia Gonsales quanto Ary França já ocuparam outros espaços, mas é na coxia paulistana que eles se formaram. Na plateia, há um Ugo Giorgetti para extrair deles o que há de melhor, em um texto premonitório, de uma produção que já seguia todos os protocolos de uma sociedade em crise.


Dora e Gabriel | Entrevista

Dora e Gabriel | Entrevista | Ugo Giorgetti

Dora e Gabriel | Entrevista

Apostila de Cinema: Nós conversamos na outra entrevista, quando foi lançado “Paul Singer, uma Utopia Militante” sobre se adaptar às dificuldades e continuar fazendo cinema, independente do contexto. Em que momento o texto de “Dora e Gabriel” foi construído e como surgiu a ideia de filmá-lo.
Ugo Giorgetti: A ideia do filme tem muitos anos e foi inspirada em uma história narrada por uma pessoa que sofreu esse tipo de assalto. Aquilo ficou na minha cabeça, em um “compartimento de reserva” como coisas que podem ser filmadas. De 2018 para 2019, as condições financeiras para conseguir dinheiro para viabilizar as produções ficaram muito difíceis. Então, voltei a pensar em ideias de baixo custo e essa ideia voltou à minha cabeça. Para você conseguir desenvolver um projeto barato, a primeira decisão é: evite ter que deslocar sua equipe. Quanto menos você desloca, mais você economiza e menos você tem que lidar com as surpresas que sempre ocorrem nas filmagens. Sempre há uma dose inesperada em todas as produções. Outra questão é se prevenir das condições externas do tempo, relacionada à luz, chuvas. E assim foi feito.

Apostila de Cinema: E como se deu o período de produção?
Ugo Giorgetti: Eu sempre falo que só faço filme em boas condições, não quero conseguir dinheiro para fazer um filme e sofrer. De jeito nenhum. Só faltava isso, né? O dinheiro que tive para fazer “Dora e Gabriel” foi muito interessante para conseguir executar da melhor maneira possível.

Apostila de Cinema: Como foi rever o filme e identificar que algumas questões, tanto na produção quanto na temática, foram antecipações do momento em que vivemos hoje, a partir da pandemia?
Ugo Giorgetti: Foram coincidências históricas, não sou profeta nem nada disso. Eu estava pensando em seguir esse abandono ao neorrealismo, o que tem acontecido conforme minha carreira avança. Nunca foi algo explícito ou convicto, mas agora quis fazer algo mais poético, alegórico. Esse filme é o que eu penso da vida: você está em uma situação e em cinco minutos pode acontecer algo transformador, mudando completamente seu destino – e sem que a gente possa comandar. A gente, então, vive a mercê do acaso. “Dora e Gabriel”, então, é um estudo sobre o acaso, sobre a existência solitária, perdida no espaço. Algo já muito tratado por filósofos do século passado também.


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Natalia Gonsales

Natalia Gonsales estreará sua peça de teatro de número trinta em breve. Está ensaiando uma dramaturgia com a grande atriz Walderez de Barros que estreia primeiro no formato online pelo Sesc Pompéia, com a expectativa de uma temporada presencial no futuro. Foi a partir de sua carreira de sucesso no teatro que Ugo Giorgetti encontrou sua Dora.

Apostila: Como chegou para você o texto do Ugo e se deu sua entrada no projeto?
Natalia Gonsales: O Ugo já tinha esse texto e encontrei ele na plateia de uma peça de teatro e ele falou sobre esse projeto. Disse que poderia ser interessante e me ofereceu a leitura. Passou um tempo e eu visitei a produtora dele para lembrar do roteiro, fiquei curiosa de ler e gostei muito da proposta. Conversamos sobre e começamos ali a caminhada. Nunca foi uma produção grande, fomos trabalhando o texto em encontros na produtora comigo, Ugo e o Ary. Ali discutimos muito o que representava aquilo, como cada um enxergava aquela situação enquanto construção de personagem. O que o Ugo traz é o que estamos vivendo hoje: as pessoas ali, confinadas, sem saber o que vai acontecer… É uma metáfora da mesma falta de liberdade que identificamos agora.

Apostila de Cinema: E como você vê a Dora e o Gabriel?
Natalia Gonsales: Bom, os dois são bem diferentes, não apenas em relação à idade, mas também de experiências de vida. O Gabriel viveu a guerra, já passou por um momento em que devemos rever nossos valores na busca pela sobrevivência. A Dora me parece uma pessoa mais alienada, não sei se chega a refletir sobre o que é a liberdade e a situação política do país. Parece que está sendo levada pela maré. Então, quando se depara com uma situação difícil como um sequestro, parece viver ali um momento importante. Conhece um homem que a faz lidar com seus próprios preconceitos e também se vê diante de alguém emocionalmente mais preparado. Ela parece viver mais à flor da pele, sempre explosiva, enquanto ele tenta manter tudo sob controle. Então aquilo vira um marco, uma espécie de ruptura.

Apostila de Cinema: Há um momento de ruptura também no meio do filme, ela encontra deixa um pouco esse espaço de conformismo e sofre um choque de realidade também…
Natalia Gonsales: Sim e no final também fica uma curiosidade sobre o que seria a continuação daquele encontro entre os dois, depois da consciência adquirida por ela. Eu brinco com o Ugo que ele tem que fazer “Dora e Gabriel 2”. Tem um aspecto de normalização dos problemas, acabamos aceitando muitas coisas e terminamos como bonecos, que também está presente.

Apostila de Cinema: Como foi levar as experiências das artes cênicas para este filme? O que de adaptação ou mudança em seu método no teatro você identificou?
Natalia Gonsales: Acredito que não exista uma linguagem específica para cinema, para teatro ou da escrita. Acho que são formas que você vai adequando em cada projeto. De início, eu sempre tento ser o mais fiel possível ao que foi escrito, mas o Ugo tem um processo diferente. Ele é um diretor que vai muito ao teatro, algo cada vez menos comum entre realizadores de cinema e televisão. E ele não vai só para procurar atores para os projetos e sim para analisar a dramaturgia, desenvolver autocríticas e isso acaba refletindo nos trabalhos dele. Tanto que “Dora e Gabriel” é uma história que pode tranquilamente ser levada ao teatro, é um texto que usa muito a imaginação do público, há vários elementos que não são mostrados. Ao mesmo tempo, há no filme um encontro de linguagens muito interessantes, na perspectiva realista da fotografia e como a narrativa depende da nossas reações para se formar. É muito rico esse encontro entre as artes.

Ao mesmo tempo é desafiador porque vivemos em um país em que o meio televisivo acaba pautando, comandando a maneira como devemos interpretar, qual o tempo do jogo cênico… A novela acaba se tornando o modelo, aquilo que público foi acostumado a assistir – e começam a colocar aquele lugar como se fosse o correto. Sou de São Paulo e aqui temos um leque de artistas no teatro gigante que, se tivesse um encontro maior com o audiovisual, acho que o cinema sairia ganhando muito. Não haveria essa preocupação constante de buscar nomes de mídia. Tem pessoas com muita capacidade, experiência e vivência e sinto falta da presença delas no audiovisual.


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Ary FrançaEncerramos nossa tarde de conversas com Ary França, ator que também possui forte relação com o teatro. Um de seus primeiros trabalhos nas telas foi através de Ugo Giorgetti no papel de um garçom em “Festa”, clássico do cinema nacional da era pré-retomada de 1989.

Dali eles desenvolveram uma amizade profissional, não apenas na dramaturgia, mas nos encontros pelas peças publicitárias dirigidas pelo cineasta.

Apostila de Cinema: Como foi a construção de Gabriel depois que você estava conformado no projeto?
Ary França: Eu lembro que eu saí completamente tonto da produtora depois que eu tive essa conversa com ele. Entrei em um sacolão e fiquei andando de um corredor para o outro pensando “agora eu preciso ver o que ele viu em mim”. Porque o desafio era muito grande, a câmera em nossa cara, dentro de um porta-malas e precisamos dar bastante credibilidade aos personagens. Por onde vamos começar? Eu sabia que seria uma escalada difícil, mas estava muito contente porque gosto do desafio.

Apostila de Cinema: A ideia de Gabriel ser um libanês radicado no Brasil veio desde o início?
Ary França: Sempre, nunca foi outra coisa. Tanto que o Ugo me pediu para estudar o sotaque e aqui em São Paulo temos uma colônia muito grande, a culinária é muito forte – talvez até mais do que a italiana. Então existe na minha memória um pouco dessa cultura, mas fui estudar, claro. Ele me mostrou um documentário dele em que um dos personagens era um porteiro aqui da Zona Leste e que era parecido com o Gabriel: um refugiado da guerra, mas estava naquele emprego simples. Ele era constantemente entrevistado e o Ugo queria uma pessoa assim, com aquela personalidade – já que ele não era uma pessoa amarga.

Apostila de Cinema: Qual foi o tempo de produção? Poderia falar um pouco sobre ela.
Ary França: Gravamos em cinco semanas e foi um tempo apertado pela quantidade de coisas que tínhamos que fazer. Mas o Ugo é uma pessoa muito organizada, uma das mais organizadas que eu conheço. O diretor de fotografia Walter Carvalho (daqui de São Paulo) é uma pessoa muito segura e incansável. Ele tinha uma mão firme e a parceria dele com o diretor levava a muitas sugestões. Eu ficava olhando e admirando esse trabalho deles. Foram poucas repetições, o filme foi quase todo rodado de primeira já que tínhamos uma familiaridade com o texto. Fomos algumas vezes na produtora do Ugo e ensaiamos em um canto, como se estivéssemos confinados em um porta-malas mesmo. E seguíamos ensaiando à parte, batendo texto. É um filme difícil fisicamente e psicologicamente, então nunca estamos totalmente preparados para ele, mas estávamos bem preparados quando chegamos no set.

Apostila de Cinema: E qual a leitura você gostaria que “Dora e Gabriel” tivesse nesse período de lançamento?
Ary França: Eu fico ansioso para saber do retorno porque acho que as leituras serão múltiplas. Não quero que seja visto de uma forma específica. Em termos de metáfora, gostaria que cada uma fizesse a sua, seja pessoal, social… Estar fechando no porta-malas de um carro é um resumo da vida: a gente não sabe para onde está indo, mas a gente sabe mais ou menos o que dá para fazer. Todos aqueles que se ligam que a vida não tem muito sentido e que, às vezes, aceita os fatos é melhor do que luta contra eles, devem se identificar.

Clique aqui e leia a crítica de “Dora e Gabriel”

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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