Sinopse: Como um cientista explica no filme, “estratos fantasmas” são camadas teóricas de tempo. Quando você vê os estratos das rochas sedimentares, entende-se que o espaço em torno dessa rocha, o próprio espaço que você ocupa, também já foi preenchido com terra. Rivers compõe um calendário, com doze seções, uma para mês do ano de sua criação.
Direção: Ben Rivers
Título Original: Ghost Strata (2019)
Gênero: Experimental
Duração: 45min
País: Reino Unido
Não me Peça Seu Dinheiro de Volta
Há muito a ideia de tempo como algo abstrato é difundida. Mesmo assim, somos reféns das nossas buscas. Por isso, ao terminar de ler esse texto sobre “Estratos Fantasmas” – parando onde achar melhor (ou lendo quantas vezes quiser) – projete outra percepção sobre ele, diferente da sua. Para alguns, tudo o que foi dito aqui será inútil. Mal escrito, uma grande perda de tempo. Para outros, tanto faz como tanto fez – é só mais um. Seria gratificante que uma parcela criasse uma troca com a crítica, seja antes de ver o média-metragem dirigido por Ben Rivers (quem sabe até se motivando a assisti-lo na janela de exibição do Festival Ecrã, onde ele permanece disponível gratuitamente até o dia 30 de agosto). Para cada uma delas, a percepção do tempo dispendido nesse texto tem um peso – mais até do que um sentido.
O filme, como bem diz a sinopse oficial do evento, desenvolve em doze partes formas artísticas de exercitar o conceito dos estratos que dão nome à obra. Chama atenção o primeiro exercício envolver o tarô – que será espelhado no epílogo decembral. Sem querer duvidar de qualquer crença, mas há em todas as tentativas de se antecipar o futuro uma parcela de indução de comportamento. Talvez se eu falar que no final desse parágrafo você ganha um código para concorrer a um prêmio especial, você leria esta frase mais rápido do que a média anterior. Isso se dá porque a Humanidade, até uma parte dela que se entende rebelde, gosta de trabalhar com a previsibilidade. Coloquei a comida para esquentar no microondas. Entendeu como a quebra de expectativa te afeta? Como sempre buscamos conexões diretas com os acontecimentos – e com as frases de um texto?
Só que a previsibilidade total nos tiraria a grande poesia do viver: a busca pelo sentido. “Estratos Fantasmas” cuida bem dessa forma como gostamos de institucionalizar e cientificar procedimentos, mas ainda queremos a poética. Os fantasmas trazidos nos rochedos foram criados pela Natureza e há muito a Geologia consegue identificar e traçar o passado daquele território. Enquanto que a História e a Antropologia seguem relendo, reescrevendo e não admitindo como definitivo qualquer conclusão acerca de uma conduta humana.
Em um de seus momentos mais interessantes, o filme nos coloca diante de uma análise da série de pinturas de William Hogarth chamada “Rake’s Progress”. Uma espécie de via crucis do capital, com o martírio de um homem que perdeu toda sua fortuna em prostituição, jogos de azar e acabou preso. Quando o compositor Ígor Stravinski morou em Hollywood (coincidência?) ele fez sua versão dessa história e a apelidou de “O Diabo do Capitalismo”. Ali há um jogo de decupagem (usando a analogia audiovisual), como se pudéssemos fragmentar uma obra pensada por unidade – como se o tempo e o movimento já não fossem complexos o suficiente e pudéssemos abandonar nosso Deleuze e trocá-los pelas sete camadas do Cinema.
Rivers, portanto, monta sua obra como um exercício mais arqueológico do que filosófico. Ferécides, o pré-socrático que iniciou os estudos de normatização da mitologia, é citado. Mas o Cronos institucionalizado não faria sentido em um filme que pretende transitar. Os meses não possuem a mesma duração e dimensões temporais se conectam e interagem com naturalidade. Um Homem de Neandertal pode ser visto ao lado de um saco gigante de garrafas de plástico. Dois grandes símbolos da inafastabilidade do tempo como destruidor de nós, apliquemos a subjetividade que quisermos. Você não terá mais os minutos que gastou lendo esse texto de volta.
Só que milhares de anos passarão e humanos ou espécies mais evoluídas provavelmente ainda estarão na Terra (não podemos esquecer que cobrimos a Mostra Ecofalante junto com o Ecrã e aparentemente seremos extintos a qualquer momento). E o Homem de Neandertal seguirá sendo representado daquela maneira. Se menos de mil anos se passarem, aquela garrafa pet com a água que você bebeu mais cedo ainda estará aqui, testemunhando a ação do tempo sobre tudo o que a cerca. Mas só se você não reciclá-la.
Em determinado momento de “Estratos Fantasmas” as árvores conversam (seria esse o “Fim dos Tempos”? M. Night Shyamalan™). Até que uma pergunta à outra: “alguma vez fomos alguma coisa?“. É um questionamento válido e toda a abordagem de Rivers cria em nós a mesma dúvida: como deixar de ser, se não sabemos o que somos? O medo do tempo é clinicamente comprovado, mas todos nós temos uma cronofobia velada. Mesmo que paguemos de normal e digamos: “eu só tenho medo é de morrer“. Só que morrer, no final das contas, é apenas deixar de ver o tempo passar. Ainda mais se você não sabe o que fazer com ele.
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