Sinopse: Era uma vez, um pequeno subúrbio familiar nos arredores de Roma, onde o calor alegre do verão camufla uma atmosfera sufocante de alienação. À distância, as famílias parecem normais, mas é uma ilusão: nas casas, nos pátios e nos jardins, o silêncio envolve o sadismo sutil dos pais, a passividade das mães e a indiferença culpada dos adultos. Porém, em “Fábulas Ruins” é o desespero e a raiva reprimida das crianças que irá revelar essa fachada grotesca, com consequências devastadoras para toda a comunidade.
Direção: Damiano D’Innocenzo e Fabio D’Innocenzo
Título Original: Favolacce (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 38min
País: Itália | Suíça
Azulejar a Praia
O uso do grotesco para retratar a falência da sociedade não é algo novo no Cinema. O que talvez seja é o nível da falência. “Fábulas Ruins“, vencedor do prêmio de melhor roteiro do Festival de Berlim 2020, consegue encontrar uma abordagem estética que limpa um pouco a sensação de deboche, algo raro. Assume a bizarrice desde o início e catalisa forças em um dos clímaces (e as regras incompreensíveis da língua portuguesa) mais perturbadores dos últimos anos. Dirigido pelos irmãos Damiano D’Innocenzo e Fabio D’Innocenzo, a linguagem em vários momentos nos remete a docilidade passivo-agressiva das narrativas de Wes Anderson.
Não pelos enquadramentos herméticos, já que há um pouco mais de caos nas escolhas de planos. O longa-metragem é menos dinâmico na montagem e mais anárquico em suas convenções. As crianças como protagonistas, o ligeiro anti naturalismo e a fotografia solar na ambientação da trama nas férias de verão no subúrbio de Roma são algumas dessas relações. Quase tão maduros, mas bem mais perigosos do que os jovens de “Moonrise Kingdom” (2012), pouco temos contato com os pais daquelas crianças. Quando temos, chama a atenção a forma como a falência das interações sociais contribuem para a sensação de caos iminente.
Vale citar como exemplo a cena em que o pai se revolta quando uma menina aparece com piolhos na cabeça. Atribui o mal à piscina de plástico que ocupava o quintal e que atraiu colegas de outra família. Ali fica claro, quando a mãe começa a raspar os cabelos da garota, que o homem se sente agredido pelo ataque aos símbolos femininos de sua cria. Uma lógica engessada, por alguém que se vê como dono da própria família. Todas as vezes em que adultos entram em cena, eles se comportam de forma hipócrita ou com rompantes de fúria. Não necessariamente essa raiva é canalizada de forma danosa (no curto prazo). O pai de outro menino debruça suas energias ao ensinar o garoto a dirigir. Não com o objetivo de se deslocar. Vincula o ato em sua forma agressiva, de controle, de poder. Emenda um assunto envolvendo mulheres e o incentiva a dar a atacar uma das colegas.
Por que tanto peso nas esporádicas participações dos mais velhos? Porque “Fábulas Ruins” se constitui pela lógica da reprodução de comportamentos. A grande virada (envolvendo um professor e que, para preservar a experiência, não esmiuçaremos) se torna apenas ferramenta de uma falência percebida pelos jovens. Talvez essa seja a primeira geração em que a falta de perspectiva ganhe proporções globais. As diversas formas de destruição nas quais estamos inseridas, aliada a um acesso maior à informação e tecnologia, fizeram das fases iniciais da vida verdadeiras bombas-relógios.
Quando falamos da produção parceira de Berlinale, “Nunca Raramente Às Vezes Sempre“, lembramos que a adolescência é marcada por rompimentos – inclusive de nossa estética. Esse longa-metragem, partindo da narrativa grotesca, consegue alcançar uma situação-limite que faz jus a todas as caricaturas costuradas nos seus dois primeiros terços. Não será difícil encontrar quem não supere o estranhamento. Outra obra italiana, “A Grande Beleza” (2013), de Paolo Sorrentino, foi pouco vista por se valer desse mesmo expediente. Ali estava uma das grandes produções daquele ano, que discutia as representações artísticas em outros espaços dentro da mesma Roma de “Fábulas Ruins”.
Deixamos de falar da jovem adulta Vilma, personagem de Ilena D’Ambra não apenas porque o epílogo avassalador lhe vincula como por ser dela algumas das sequências mais estranhas do filme. Digo estranhas não como julgamento moral, pelo contrário. O longa-metragem exige que toda a moralidade seja colocada de lado pelo público, senão ele perde o impacto. Saber que a descoberta do sexo é parte de nosso processo de crescimento, por exemplo, mesmo que os irmãos D’Innocenzo explorem essas manifestações com uma ausência de pudor capaz de provocar choque, faz parte do jogo.
O que fica é a necessidade de ouvir os mais jovens. Eles parecem mais dispostos a “acabar com tudo isso aí”, muito porque enxergam a sociedade como um organismo que falhou. O momento é de permiti-los criar novas soluções para os espaços. Há muito, o que antes era um choque geracional, já virou conflito. Quando “Beleza Americana” (1999) foi vendida como comédia e apostou no bizarro enquanto elemento narrativo, muitos espectadores pareciam ter sido introduzidos a uma realidade que fugia do american way of life. Hoje, o filme parece uma drama simplório.
Outras obras trazem esse conflito aberto como mote. O francês “O Professor Substituto” (2018) e o belga “Another Round” (2020) usam uma crueza para se colocarem como questionadores das mensagens transmitidas por quem deveria nos ensinar. Já “Fábulas Ruins” volta apostar na narrativa do estranhamento, no grotesco como premissa, para supostamente dar voz aos nossos futuros comandantes. Histórias mal contadas saídas de um diário de uma menina que escrevia com caneta verde. Bizarras demais para parecerem verdadeiras, como fez Sam Mendes na virada do século XX. Torcemos para, daqui há vinte anos, tais fábulas não deixem a impressão de serem documentais. Hoje, a frieza com a qual lidamos com nossos problemas (assim como o comportamento do pai no clímax, palavra que só é bonita no singular) não deixa dúvidas: se a Humanidade, destruidora como está, desse um mergulho, seria capaz de engolir a baleia azul.
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