Fakir

Fakir Documentário Helena Ignez Crítica Pôster

Sinopse: O último longa-metragem dirigido por uma das maiores cineastas do Brasil tem como ponto de partida um livro de 2015 sobre faquirismo, uma arte da fome cujos intérpretes mais famosos chegavam a ficar 100 dias em jejum. O trabalho de Ignez mescla material de arquivo das décadas de 1920 a 1950 com cenas documentais e teatrais contemporâneas para explorar uma prática raramente exercida hoje em dia, mas que já atraiu multidões em países como França e Brasil. O filme destaca algumas das mais icônicas mulheres faquires, cujas identidades enquanto artistas e mulheres lhes causaram uma dupla perseguição.
Direção: Helena Ignez
Título Original: Fakir (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 32min
País: Brasil

Fakir Documentário Helena Ignez Crítica Imagem

Bom Dia, Professora Helena

Fakir” é a maneira pela qual Helena Ignez, com todos as as características que lhe cabem (inteligência, experiência, vitalidade, dentre outras), conta histórias de um tempo que – na verdade – nunca se foi. Mudando objetos, formatações de territórios, linguagens midiáticas, o que assistimos no documentário da cineasta é a velha diferença de tratamento e entendimento de qualquer prática da sociedade quando ocorrem por homens ou por mulheres.

O caminho que Helena traça é, ao mesmo tempo, envolvente e prazeroso. Um longa-metragem que segue um caminho tradicional para apostar que as sensações e o debate surjam de seu recheio – e magnificamente eficiente em seu intento. A começar pelo título: “Fakir” – que a diretora (também narradora do filme) explica que, em árabe, significa pobre. Mais adiante ela resgata o momento em que faquiresa se tornou uma palavra usada no trato de uma atividade muito popular no Brasil e na França da década de 1950. Homens e mulheres prometiam um “espetáculo de jejum e tortura” e alimentaram uma rede de exibições populares na busca por novas quebras de recordes. 25, 50, 100 dias trancados em uma redoma de vidro, em camas de pregos e acompanhado por cobras. Sendo monitorados 24 horas por dia.

O longa-metragem traz os expoentes dessa arte: Silki, Urbano e Lookan. Homens que moviam multidões e recebiam apaixonados relatos dos jornalistas. Ignez evita depoimentos ou testemunhos, fugindo do caminho simplista da constituição de um saudosismo que é latente. Provoca isso com a própria narração e uma trilha marcadamente histórica. Com poucos arquivos de imagens, o uso de fotografias e muitos recortes de jornais oferecem um risco de montagem que a obra soluciona com muita facilidade. O melhor elogio para um documentário tão difícil de se desenvolver como “Fakir” é chegar ao final da sessão achando que foi simples produzi-lo, pela leveza de sua construção.

A obra se torna política quando seu foco passa a ser as incursões de mulheres faquiresas. O que começa com visões romanceadas em pessoas como Verinha, uma pernambucana que vai para o Rio de Janeiro com dançarina de frevo, vai se transformando em histórias cada vez mais trágicas – pelos mesmos culpados que conhecemos. Na perspectiva histórica, chama a atenção a forte carga preconceituosa do ofício de atriz na época, sendo comparadas a prostitutas (Dercy Gonçalves gostava de lembrar disso em suas entrevistas). Há também um caminho interessante sobre esse sucesso de eventos públicos envolvendo pessoas dispostas a simplesmente não viver. Mesmo que Helena Ignez não siga para esse lado, é inevitável transportar o que seria um pré-sociedade do espetáculo para a receptividade atual. Mais adiante ela trará debates éticos sobre moralidade em relação à nudez, mas hoje a problematização de apresentações como essa romperiam totalmente com o entusiasmo pelo qual se tratada os faquires nos anos 1950.

Ali estávamos diante de uma sociedade à procura do fantástico. Com a popularização do cinema e a chegada da televisão, atrações que por séculos criaram uma aura mística em circos e tendas de parques envelheceram em virtude da perda de inocência da plateia. Essa procura, por sinal, é constante e se perdeu nas infinitas possibilidades tecnológicas. O “Fakir” nos lembra, então, de um período em que a humanidade tinha prazer em se ver superando seus próprios limites. Nada mais sobrenatural do que os grandes feitos humanos.

Porém, nada disso se aplica quando as mulheres querem ocupar um espaço. Por isso, a diretora começa a trazer exemplos que tornam nítida a diferença de tratamento. Rosana, por exemplo, não consegue lidar com essa fama baseada na espetacularização de si e tira a própria vida. Só que a imprensa responde com uma abordagem romantizada do suicídio. Sandra precisa esconder que era mãe solo e tratava a própria filha como uma assistente de palco. Mara, inspirada em Luz del Fuego, usa sua fama para propor uma libertação do corpo pela nudez. Aqui, mesmo com o jogo ganho, o filme se torna ainda mais atraente. Em uma escalada de tentativas esmagadas de ter a mesma fama dos homens, as novas mulheres que se seguiam naquele ofício traziam consigo mais consciência e discursos mais contundentes a partir de um entendimento sobre si. Por isso, Mara segue o caminho da politização do próprio corpo.

Claro que todas essas trajetórias serão mais do que dificultadas, levando ao esmagamento total daquelas mulheres. Lookan, por exemplo, teve uma esposa de nome Yone. Com ela, fez espetáculos concomitantes de faquirismo. Mais adiante, um caso de feminicídio o deixaria impune sem qualquer consternação da opinião pública. Ainda era forte a aceitação de propriedade do homem sobre a mulher, sem que a sociedade se voltasse contra a falta de autonomia delas. Não seria assim até hoje?

Suzy King encerra o compilado de histórias de “Fakir” com uma perseguição que a tornaria a última a seguir esse caminho. Uma atividade já decadente, que nunca permitiu uma respeitosa ocupação feminina. Tentaram de todas as formas e foram impedidas das mais variadas maneiros. Ao faquir homem, fica a moleza, como a canção (“A Moleza do Faquir”) que toca na parte final e me explicou, depois de mais de trinta anos de vida, de onde meu pai tirou a expressão “marca barbante”.

Não bastasse as possibilidades de debates, a abordagem dinâmica e a acidental ajuda no próprio entendimento familiar deste pobre crítico, Helena Ignez lateraliza sua obra em três breves momentos. Faz uma construção cênica envolvendo duas ex-praticantes de luta livre. A princípio usada como rápidas quebras de narrativas (são várias histórias e quase sempre segmentadas), a cineasta encerra seu “Fakir” com o verdadeiro objetivo daquela formatação: permitir que a libertação do corpo feminino seja um processo constante. De fato, não há limites para Helena Ignez, que demonstra nesta obra que a objetividade é uma grande virtude em um mundo onde não podemos mais perder tempo.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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