Sinopse: Três gerações de uma família atravessada pela Ditadura Militar brasileira (1964-1985). Ao mergulhar em uma história pessoal e entrelaçá-la com a história do país, entre passado e presente, o filme investiga a persistência do silêncio como uma ferramenta de apagamento da memória.
Direção: Carol Benjamin
Título Original: Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 28min
País: Brasil
Debaixo de um Guarda-Chuva
Como contar uma história de sua família, na face mais cruel de um regime totalitário do país, sabendo que revirar essa dor não é bem aceita pelo próprio pai? A diretora de “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil“, Carol Benjamin, consegue aliar as técnicas de produção de um documentário em uma obra intimista que – ao mesmo tempo que respeita a participação que cada um se permite – não deixa de ir a fundo no objeto ao qual se propõe. Por trás de sua narração que nos coloca na área mais íntima de seu entendimento como realizadora, está a coragem de quem não quer que o passado seja esquecido, principalmente em um momento onde visões deturpadas são chanceladas por quem nos comanda.
A produção da Daza Filmes se inicia com uma sentença muito curiosa e que já provoca imediata reflexão do espectador. Nossos pais e nosso país são caixas pretas, diz a cineasta. Sobrinha de Cid Benjamin, até hoje jornalista muito atuante, que ano passado lançou um livro fundamental para os nossos tempos chamado “Estado Policial: Como Sobreviver”, ela quer resgatar o passado de militância do pai, César. Só que não há, pelo lado do biografado, a intenção de reviver os difíceis momentos de quem – com apenas 17 anos – foi torturado, preso e condenado a treze anos de prisão, mesmo sendo menor de idade. Carol nos mostra como esta troca nunca foi procurada por ele, mas entende que, a partir do momento em que estamos lidando com uma história de interesse público, ela não poderá tolher sua liberdade de criação em prol da manutenção das relações.
É impressionante como “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil” é profundamente revelador sem desrespeitar e contundente mesmo diante do envolvimento pessoal. Como um bom exemplar de documentários onde a realizadora se coloca na primeira pessoa, mais do que a abordagem histórica, estamos diante de um debate sobre laços familiares comum a todos nós. Carol sempre ouviu pela boca de sua avó, Iramaya Benjamin, as memórias daquele tempo. Uma senhora que ficou anos buscando justiça para seus filhos e que sempre se mostrou disposta a tratar desses assuntos com a neta, fundadora do importante Comitê pela Anistia e falecida em 2012. Com o processo de construção do filme, a diretora acaba não caindo na fórmula simplista de eleger um protagonista. Sua narrativa surge da troca entre parentes, da leitura de cartas, mas o objetivo é tentar encapsular a verdade, dando sua contribuição de resistência à onda revisionista protofascista que os filhos ideológicos daqueles que tanto fizeram mal a César estão surfando. No longo processo de construção do documentário, que desde 2016 é apontado em notas como passível de lançamento, a política andou e reformulações ideológicas tornaram o filme ainda mais curioso.
No trânsito geracional, Carol descobre em suas pesquisas e entrevistas um avô que nunca imaginava que teria. Supre a negativa do pai de revistar sua biografia com materiais de arquivo, do tempo em que ele acreditava que suas fala se mostrariam relevantes para outro tipo de debate político. Viaja à Suécia, onde Cesar esteve exilado e encontra peças do maior quebra-cabeça que ela poderia montar. Independente da frustração dele com a esquerda, suas opiniões e formas de comunicação, há uma história que não merece ser esquecida. Por isso, por mais que sua avó acabe sendo a condutora das ações – e parte dela a melhor parte do documentário, que trata da anistia – a cineasta sempre olhará para o pai observando as marcas que ele carrega.
No final da década de 1970 o Brasil acreditava que, junto com a já citada anistia, punições severas e reparações seriam observadas. Até que o Presidente da época, João Figueiredo, diz em seu discurso: “certos eventos, melhor silenciar em nome da paz da família brasileira“. Ali inicia um processo de normalização das torturas e prisões que ocorreram durante a ditadura militar. A sombra da desculpa do “ou era isso ou o comunismo” nunca foi afastada. Com o passar do tempo, a mãe de Cid e César se torna uma militante acidental e é dela a verbalização de um dos grandes paradoxos históricos que muitas obras tentam materializar e não conseguem: como tornar a anistia ampla a ponto de atingir torturadores, se nunca houve contra eles nenhuma punição?
O documentário nos lembra que o único torturador de carteirinha foi o coronel homenageado pelo atual Presidente do Brasil no golpe antidemocrático de 2016. Perpassa a Comissão da Verdade, objeto de alguns comentários em outros texto aqui da Apostila de Cinema como “Resplendor“. Todavia, entende que o objeto se esgota nas lembranças do período mais duro da luta do pai. Fundador do PSOL, candidato a vice-presidente na chapa de Heloisa Helena em 2006 e que – dez anos depois – se tornou Secretário Municipal de Educação do governo de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro, Cesar é mostrado pelas lentes das gerações que lhe antecedeu e lhe sucedeu. Uma filha que assiste o que começou com a impunidade a ditadores se tornar uma era de apagamento e que não renegará sua arte em nome de nenhuma paz evocada por governante militar. Carol Benjamin não ignora que sob “Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil” paira uma grande nuvem cinza – mas nos aproxima de Iramaya, que mesmo cansada de se molhar, ajudou a construir na cabeça da neta um legado de luta que dificilmente não teremos que nos valer.
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