Pão Amargo

Pão Amargo Documentário Crítica É Tudo Verdade Imagem

Sinopse: “Pão Amargo” traz crônicas da rotina de um campo de refugiados sírios no Líbano.
Direção: Abbas Fahdel
Título Original: (2019) حقّ الخُبزات
Gênero: Documentário
Duração: 1h 27min
País: Líbano

Pão Amargo Documentário Crítica É Tudo Verdade Imagem

Lugar para Estar

Com o objetivo de não transformar refugiados em meras estatísticas, o diretor Abbas Fahdel apresenta “Pão Amargo” no mostra competitiva de longas-metragens internacionais do Festival É Tudo Verdade 2020. Dentre o milhão e meio de sírios no território do Líbano, metade é formado por crianças. Algumas ainda possuem lembranças de sua terra-natal, o que lhe permite ao mesmo tempo fazer conjecturas sobre o futuro e transmitir um embrionário conhecimento pela oralidade às outras que não conseguem concretizar tais memórias. Um documentário que vai a fundo no olhar observador da câmera, em um mergulho na realidade que faz com que aqueles jovens tomem conta das ações.

Fahdel segue um caminho diferente de Bahman Kiarostami em “Exodus“, filme que se passa na fronteira do Irã com o Afeganistão e que fez parte da nossa cobertura da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema. Não há uma perspectiva de retorno ou nova migração no curto prazo naqueles que o iraquiano quer representar em seu filme. Ao mesmo tempo em que dá nome, rostos e vozes a um grupo de refugiados, paira sobre a obra uma certa desesperança, potencializada por uma crise econômica local.

Há apenas um libanês em “Pão Amargo” e ele serve de observador participante, na ideia antropológica. Inserido naquela comunidade, tenta trazer alegria a algumas crianças se vestindo de Papai Noel, por exemplo. No armazém da localidade, a informação de que a dificuldade de honrar os pagamentos dos fornecedores pode deixar o estabelecimento sem pão é recebida com doses de consternação e empatia. O cineasta, de maneira sensível, compreende que há situações rotineiras ou corriqueiras que não suscitam o que uma notícia como essa traz e eleva aquelas com forte potência narrativa ao local de destaque.

As escolhas da montagem tencionam o equilíbrio entre a representação documental clássica e a aproximação da imersão naquela comunidade. Esta se dá quase exclusivamente por olhares e vozes dos mais jovens. Alguns nunca estiveram ou não se lembram da Síria. Outros lá viveram tempo suficiente para desenvolver um ideal de terra-natal que pretendem reencontrar. Apesar de muitos novos, inseridos em uma dura realidade, chama a atenção a demonstração de maturidade. Talvez por isso o desenvolvimento de uma carga de ancestralidade já esteja diretamente vinculada aos seus projetos.

A verbalização não é buscada a qualquer preço por Fahdel. Por vezes ele opta por registrar o deslumbre ou o olhar divertido de um grupo de crianças diante da câmera. Em outros, nos deixa triangular uma relação entre dois adolescentes que, sem precisar dizer nada, apenas se fazem companhia. Menos troca de experiências e mais permissões para registrar vivências. A tonalidade de “Pão Amargo”, tanto na estética quanto no ritmo da edição, converge com uma realidade que se caracteriza pelo esvaimento de expectativas, beirando à imutabilidade. Pensado para ser temporário, os campos de refugiados vão se tornando a própria vida daqueles personagens.

Ao se transformar no fim por si só, o documentário avança nas questões pontuais – como a separação de um casal, instalados em assentamentos separados – e aborda aspectos culturais diretamente ligados aos grandes acontecimentos da nossa existência. Nisso, o longa-metragem ganha força, ao apresentar o descaso do Poder Público pelo fornecimento de moradia com condições precárias de habitação. Uma máfia miliciana torna a vida daqueles sírios ainda mais difícil, como se já não estivessem abandonados à própria sorte de plano. Há, ainda, nos relacionamentos, a naturalização do casamento entre adolescentes; e na busca por trabalho, a dependência dos ciclos de colheita das terras da região – o que os deixa sem serviços no inverno.

Apenas ao final de “Pão Amargo” alguém olha diretamente para a câmera. Ela estar ali torna indiferente a vida dos adultos, por estarmos diante de uma realidade que não há como ser maquiada, romantizada ou relativizada. Só que as crianças veem magia. Por mais maturidade que uma situação limítrofe como a trazida por Abbas Fahdel lhe dê, a elas reservaremos sempre o direito de sonhar.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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