Canto dos Ossos

Canto dos Ossos Crítica Mostra Tiradentes Pôster

Sinopse: Duas amigas monstras decidem seguir rumos diferentes. Décadas depois da despedida, Naiana é professora do ensino médio em uma pequena cidade litorânea, onde um hotel em reforma emana estranha presença. A três mil quilômetros dali, a noite devoradora envolve Diego.
Direção: Jorge Polo e Petrus de Bairros
Título Original: Canto dos Ossos (2020)
Gênero: Drama Fantástico
Duração: 1h 28min
País: Brasil

Canto dos Ossos Crítica Mostra Tiradentes Imagem

Ex-Cinema

Canto dos Ossos“, vencedor do prêmio de melhor longa-metragem da Mostra Aurora da 23ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2020, foi o filme de abertura da versão paulista do festival, organizada em parceria com o Sesc São Paulo. Uma obra em que, mais do que todas as visões e percepções que lhe são permitidas, permite ao espectador sentir total liberdade de absorção e fruição desta criação única dos diretores Jorge Polo e Petrus de Bairros. “Você destruiu o mundo, agora deve reconstruir” é uma das frases que mais chama a atenção no percurso narrativo que nos impõe uma poética de inquietude provocativa e que, caso não haja a conexão esperada, deverá gerar o mero desapego. Uma produção que essas mal versadas linhas são incapazes de analisar com profundidade, exigindo de quem mergulha em sua fantasia um ponto norteador – que a Apostila de Cinema se valerá com a coerência devida à sua abordagem.

A incógnita sombria que se apresenta transita por uma narrativa de desalinhamento temporal. Jorge e Petrus unem Búzios e Canindé em territórios; o horror clássico e o terror social em gênero; e a morte que ressuscita na exploração da corporalidade de seus personagens. Jonas, um adolescente que aparece morto na parte alta da cidade, é o ponto de partida de uma trama que conecta – em mais de uma linha no espaço-tempo, algumas das grandes vítimas da sociedade brasileira. A história, contudo, não quer criar nenhuma aura de suspense. Prefere se valer de alguns exageros observados nas idealizações de cinemas como o de Guto Parente, por exemplo. Todavia, é até bem direto em sua metaforização. Evoca as construções clássicas de monstruosidades para simbolizar o genocídio de todos aqueles que escapam da heteronormatividade branca.

Porém, “Canto dos Ossos” também é bem sucedido em outras representações. Une ícones dos reflexos da nossa falência na figura de uma professora, um fotógrafo e na proposta de um grupo de estudantes secundaristas. Cria relações entre um antigo hotel em reforma, uma escola e a morte de  um jovem. Nessa mercantilização do nosso futuro, deixado nas mãos da especulação empresarial, é bem mais atraente essa simbologia que apresenta adolescentes em processo de construções de referências, artísticas e literárias. A censura a obras do século XIX pelos responsáveis e os questionamentos sobre aquilo que não sabem, afetando diretamente o nobre ofício de ensinar, também perpassam a narrativa.

A polícia se nega a investigar uma morte que – está nas entrelinhas do preconceito enraizado – possui menos valor. Tudo isso apimentado com uma fluidez de relações e do despertar da sexualidade que nenhum governo nessa Terra conseguirá privatizar. Com suas propostas de ex-mundo, ex-humanos, conseguimos chegar ao ex-cinema. Aqueles pegos de surpresa tenderão a aceitar uma ininteligibilidade que os faça pular sem culpa para a experiência seguinte. Mais do que propor a projeção de si, o longa-metragem questiona em primeiro plano qual o seu conceito sobre si. Uma grande alegoria de transferência de conhecimento, que ninguém mais se entende como se dá. O fotógrafo que não nega trabalho produz imagens que vão do registro geográfico ao testemunho de um crime mal solucionado.

É como se os agentes formadores e informadores da sociedade transitassem, vagando sem rumo pela sociedade, enquanto aqueles que deveríamos cuidar são vampirizados. Um país que repete como um mantra que todas as instituições estão funcionando, que assiste à democracia chorando de cócoras no canto do quarto e diz da porta para fora que ela vai bem, obrigado. Trata-se de uma obra de rompimento – do tempo, da poética, da sociedade, do cinema. Ao mesmo tempo, um grande laboratório de produção, que ultrapassa o artesanal mas não quer emular o audiovisual industrializado. É tão polarizante quanto a distopia na qual estamos inseridos. Mais do que ousadia, sua vitória em Tiradentes é um convite a esse rompimento. Esqueçam as bases fundantes de uma comunidade sólida. Estamos sob areia movediça. Se perca no filme mais desorientante do ano. Neologize-se, três vezes somente nesse trecho final. Odeie “Canto dos Ossos“, se você quiser. Mas ame essa chance que ele lhe dá para que você atinja tal estado de primitivismo.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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