Sinopse: Composto por cenas de usina de carvão e de suas comunidades vizinhas, “Gerações” foi filmado nos Estados Unidos em 2018 e 2019. O filme consiste em doze quadros estáticos de uma única cena, retratando pessoas realizando atividades cotidianas enquanto viviam na sombra de grands estações de geração de energia.
Direção: Lynne Siefert
Título Original: Generations (2020)
Gênero: Experimental
Duração: 1h 7min
País: EUA
Síndrome de Estocolmo Capitalista
No que pensamos como proposta de programação, encerramos o Festival Ecrã assistindo “Gerações“, da realizadora Lynne Siefert. Em pouco mais de uma hora, doze enquadramentos estáticos nos revelam algumas das maiores usinas de carvão dos Estados Unidos – muitas desativadas ou em processo de, porém algumas seguem com carga máxima de poluentes. Um filme que nos faz pensar sobre as organizações das cidades e os danos causados pela produção de energia. É o auge do teor observatório, o espectador pode permanecer na sessão meramente contemplando. O que torna o cinema experimental ainda mais interessante é essa liberdade no desenrolar dos seus pensamentos. Está aqui uma produção que pode fazer pensar muito – mas aceitando que alguns negarão esse objetivo.
Em 2019 a mesma mostra trouxe o interessante “Diários de Terraços e Torres de Água” (2018), de Nobuyuki Asai. Ali a ideia era trazer 365 planos de caixas d’água suspensos nos topos dos prédios de Nova Iorque. A ordem cronológica era induzida e acompanhávamos, do topo dos gigantes de concreto da Grande Maçã, as estações do ano, as datas comemorativas e as transformações do clima. Aqui é como se Siefert tentasse esse paralelo com os meses de um ano, mesmo que a fruição total da imagem não permita tanto essa individualização.
O mais belo de “Gerações” é ver aquelas construções testemunhando uma sociedade que se movimenta – quando, na verdade, o faz com a contribuição dela. Uma contribuição que também destrói. Uma produção que também traz o caos. As paisagens vão se alterando e aos poucos vamos naturalizando o olhar sobre essas usinas que – a despeito das consequências à saúde – convivem em espaços cheios de vida.
Se na primeira cena destaca-se apenas a saída e chegada dos caminhões pelas vias auxiliares, na segunda, famílias inteiras pescam e passeiam com seus cachorros, enquanto na terceira uma pista de skate reúne um grupo de adolescentes. São configurações e interações de cidades que apostam em contrapartidas de grandes empresas poluentes – que sempre se valeram dessa premissa para não passar por um processo de vilanização.
Dali em diante, Siefert começa a formatar suas imagens com uma excepcional beleza estética. Usa a geografia estadunidense para nos levar ao cânions, em uma composição de cores no meio do deserto que parece que o céu foi desenhado. A visão central dessas usinas provoca certo incômodo, ela sempre surge como uma intrusa, mas que rouba o protagonismo da Natureza. No enquadramento selecionado para o pôster oficial que ilustra esse texto (a quinta cena) o gigante surge acompanhado de torres de energia. Trata-se de um dos momentos com maior simbolismo, mostrando como essa ocupação de espaço de lazer afeta a própria experiência das pessoas.
“Gerações” segue com usinas em meio a plantações (poluindo ainda mais os alimentos que nos chegam à mesa), no meio da neve (segue em funcionamento independente do clima), na beira da linha dos trens de carga e até perto de um campo de golfe, território sagrado para a elite que fez para si um esporte com o poder de torná-lo um empresário burguês instantaneamente. O tempo que o rico dispõe para dar uma tacada não é o mesmo do trabalhador. Por consequência, as peças do tabuleiro da sociedade que poderiam urgir contra os danos em potencial desses monstrengos energéticos não conseguem espaço necessário para desenvolver uma consciência.
Aliás, se há algo que esse filme permite é a atração de questões que – mesmo em grupos politizados – seguem não sendo debatidas. Na dobradinha com a Mostra Ecofalante acabamos sendo repetitivos nessa necessidade dos hábitos de consumo serem revistos. Uma parte privilegiada do planeta está há seis meses em casa e o que o mercado fez com elas foi criar novos mecanismos para que essa sangria de fruição das potencialidades do planeta não se estanque.
O filme se vale dessa calmaria de quem tem o poder nas mãos. Na penúltima cena consegue até transmitir paz, usando a imagem e o som de um grande rio – no que parece ser outra usina, a hidrelétrica. Brinca com nossas sensações para trazer, no corte final, a cena mais absurda: uma usina de carvão no meio das casas, acompanhada de sons de buzinas, sirenes e todas as interações urbanas que nos cabe. Em “Breakpoint: Uma Outra História do Progresso” (2018) falamos do quanto essa forma de produção de energia foi vendida pelo Capitalismo como grande solução para o desmatamento no início da Revolução Industrial. Passado mais de um século, não há dúvida de que, por desconhecimento ou mau caratismo, era uma informação mentirosa.
“Gerações” nos revela que, sempre que a outra opção for lucros e produção em queda, não há comprovação de danos que leve a uma mudança. Resta a nós apenas conviver e contemplar a nossa desgraça.
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