Guaxuma

Guaxuma Nora Normande

Sinopse: Eu e a Tayra crescemos juntas na praia de Guaxuma. A gente era inseparável. O sopro do mar me traz boas lembranças.
Direção: Nara Normande
Título Original: Guaxuma (2018)
Gênero: Animação Documental
Duração: 14min
País: Brasil

Guaxuma

A Maturidade Precoce*
*crítica originalmente escrita em 08 de dezembro de 2018

Quando a palavra “Guaxuma” abandona a tela para dar espaço a uma visão panorâmica da praia alagoana que dá nome ao curta-metragem, convenciona-se com o espectador que pelos próximos quinze minutos assistiremos a uma obra de animação. As técnicas empregadas possuem mais o condão de definir estética e linguagem ao invés de apontar um gênero ao filme. Nesta inquietação que se alojou na produção audiovisual brasileira, o filme de Nara Normande é mais uma peça fundamental de redefinição do Cinema Brasileiro.

A cineasta, alagoana radicada em Pernambuco desde a adolescência, traz recordações de sua infância, narrando a história de sua amizade com Tayra como um documentário. Sua amiga faleceu em 2010 em decorrência de um acidente de moto, um ano antes de Nara lançar seu primeiro trabalho, “Dia Estrelado“, produção de estreia gerado como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo. Feito em stop-motion e usando com matéria-prima massa de modelar, “Dia Estrelado” é uma incursão na região mais carente do Nordeste brasileiro, área tomada pela seca. Nessa estreia, a realizaodra dialoga com obras do período de clausura de Van Gogh para compor o cenário, em um trabalho de difícil execução. Ainda mais ao basear a trilha do filme nos sons de animais e da (falta de) água. Vale mencionar que a água é um personagem constante na breve filmografia da diretora.

Já em “Guaxuma“, são utilizadas diferentes técnicas de animação, que na unidade fílmica tornam as escolhas coerentes. O caminhar da obra se vale de uma abordagem singela, mas apenas à primeira vista. Na execução o filme se revela complexo e globalizado, com a adição na equipe do português Abi Feijó, especialista em animação calcada em areia; do técnico de som canadense Normand Roger; e da co-produção com a França. A trama segue a forma com a qual a Nara contadora de histórias parece encontrar sua zona de conforto: parte de um momento particular da protagonista, causando imediata empatia, para criar um arco narrativo simples, sem deixar de confrontar suas questões.

Normande, assim como outros realizadores igualmente corajosos, não fugiu de usar a própria biografia quando viu a oportunidade de entregar um material sensitivamente forte. Com estética, linguagem e mensagem bem definidas. Mesmo utilizando um ponto de partida palatável, uma animação atraente para o espectador que gosta e é familiarizado com essa linguagem. Ela é uma das representantes mais promissoras e relevantes do audiovisual nacional ressignificado após a distopia que nosso país vive desde 2013. Uma mulher nordestina que com seu segundo trabalho (“Sem Coração“, de 2014) foi selecionada para a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes e ganhou o troféu Illy de melhor curta-metragem. Na produção citada ela abandona a animação como linguagem para contar uma história de amor adolescente em São Miguel dos Milagres, no seu Estado-Natal, Alagoas. Sua primeira experiência com a direção de atores não só foi bem sucedida, como apresentou personalidade estilística que permitiu que os entusiastas da produção brasileira sonhassem com voos mais altos da realizadora. Ela parece ter adquirido uma maturidade precoce em seu ofício tanto quanto a menina Nara em sua relações humanas a partir de suas férias em Guaxuma.

Um exemplo foi a escolha admitida por ela em entrevista quando do lançamento do curta-metragem, acerca da proposital filmagem em película de 16mm, de aspecto mais granulado que a de 35mm. Uma opção que faz total diferença na experiência de assisti-lo. Em comum, os trabalhos anteriores utilizam uma narrativa mais contemplativa, que a montagem de “Guaxuma” acaba por repelir. Ao usar plurais técnicas de animação e narração em off, o documentário ganha dinamismo, sem perder o tom poético.

Aliás, o viés mais impressionista afasta um pouco este trabalho dos anteriores, bastante preocupados em descortinar uma realidade carente de perspectiva. Até porque em “Guaxuma” não há o invólucro ficcional, já que o filme parece não fazer concessões à visão de mundo da cineasta. Por isso, interpretá-lo como singelo talvez seja o ponto de partida para abraçá-lo. Não há o choque da excessiva miséria de “Dia Estrelado” ou a banalidade com o bullying ou o sexo na adolescência de “Sem Coração”. A sensibilização é adquirida em virtude da empatia do público e do poder do próprio núcleo da trama.

Portanto, a realizadora comprova a facilidade de transição entre gêneros e linguagens cinematográficas. “Guaxuma” apenas confirma que nada em sua obra é sem propósito. Todo produto final entregue por Normande, uma diretora que não seguiu o caminho das abstrações, revestindo sua obra com o verniz da realidade. A objetividade com a qual desempenha as múltiplas funções no seu curta-metragem mais recente fundamenta a assertiva. Além disto, mesmo apresentando uma autobiografia, em nenhum momento se carrega de tonalidade melodramática, mesmo que qualquer autoindulgência pudesse ser compreendida. A cineasta encontra o equilíbrio entre o apreço e o distanciamento necessário para que o produto audiovisual baste para atingir o intento de emocionar.

“Guaxuma” coleciona troféus por onde é exibido: Anima Mundi, além dos prêmios de direção, direção de arte e trilha sonora para curtas-metragens no Festival de Brasília, ambiente favorável à visão da arte como resistência. Panteão dos realizadores enquanto peões da obra de reconstrução da sociedade soterrada no entulho. Em paralelo, o mainstream mezzo arthouse das massas, mezzo globochanchada estendeu o tapete para Normande lhe concedendo o Kikito de melhor curta-metragem do Festival de Gramado. A comunidade internacional enxergou a linda alma da menina Nara e a agraciou com o prêmio de melhor curta-documentário no Festival Internacional de Cinema de Haptons, o que enche de expectativa os caçadores de listas mais descolados, que já cogitam ser Guaxuma um dos indicados ao Oscar de 2019 em sua categoria.

Toda esta visão globalizada a serviço da contação da simples história da menina que passava suas férias em uma linda praia e ali formou um forte laço de amizade segue sendo reconhecida. Todas as criações usando areia seca em um vidro (a tônica da primeira metade do filme), trazem um misto de sensações que trafegam entre a fluidez e a fragilidade das memórias de Nara. Ao utilizar reproduções fotográficas reais, de maneira dinâmica com deslocamentos, aumentos e diminuições de perspectiva, passa a ter certeza de que se há gênero ao qual se faça questão de definir, “Guaxuma” seria, de fato, um documentário, um filme-ensaio.

Já a técnica de animação utilizando areia molhada, quase como que imitando o barro, passa a impressão de concretude, de relações edificadas. Aproxima a vida de Nara do imponente prédio onde morava em Recife, afastando a protagonista da parceira Tayra e das lembranças das fundamentais experiências que viveram juntos. É quando o filme se permite ser mais poético, como quando Nara lembra que “a chuva fazia estrias na janela”. É ali que ela se dá conta de tanta coisa que os Flaming Lips lhe ensinaram em sua adolescência e que só na concepção do projeto, iniciado em 2011 e finalizado quando a canção “Do You Realize” toma conta da trilha e os créditos ganham a tela, é possível que ela tenha compreendido.

Clique aqui e leia nossa cobertura completa da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *