Leia entrevista com Haroldo Borges, diretor de ”Filho de Boi”.
Esse conteúdo faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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Haroldo Borges Não é Apenas Um
O Cinema Brasileiro não permite que um realizador seja apenas um. Senão, ele não realiza. Envolvidos em todas as etapas de produção, aos poucos a ideia de construção coletiva foi se materializando. Uma espécie de chancela de uma arte feito por e para comunidades, que urge por representatividade. Sendo assim, produtoras passaram a ter o Coletivo como ideal. Uma palavra que carrega consigo um peso, uma força.
Haroldo Borges compõe, ao lado de Paula Gomes, Ernesto Molinero e Marcos Bautista a Plano 3 Filmes. Algo que já desperta a curiosidade de quem assiste a “Filho de Boi“, mais nova produção do grupo – em exibição na Competição de Novos Diretores da Mostra Brasil na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – é a divisão de tarefas. Um set é uma idealização coletiva, mas necessita que cada um tenha suas demandas bem definidas.
Soma-se o fato de estarmos diante de um longa-metragem protagonizado por João, um menino sem experiência em atuação – em uma jornada que aflorará a sensibilidade do espectador. Acaba que o jovem também realiza suas trocas, traz suas vivências – mostrando que a ideia de coletividade na produção audiovisual é quase tão elástica quanto um Jonas em um circo sem lona.
Haroldo Borges aceitou o convite da Apostila de Cinema para responder algumas perguntas sobre seu processo produtivo – que você lê abaixo.
Entrevista | Haroldo Borges
Apostila de Cinema: Como foi a preparação dos não atores e como foi o processo de seleção para o filme? O roteiro já foi pensado a partir dessa estrutura?
Haroldo Borges: O trabalho com os atores foi uma verdadeira maratona. João, o protagonista, foi o último candidato que conhecemos dos 1500 meninos que entrevistamos durante a pesquisa; todos de escolas públicas; todos do sertão.
Começamos procurando por um perfil específico que tínhamos no roteiro. Mas ao ir conhecendo esses meninos, resolvemos nos deixar levar por suas histórias. Até que conhecemos João. Tímido, falando baixinho… Um menino de alma entranhada! O mais improvável para viver um protagonista. Mas foi essa improbabilidade que nos cativou.
O elenco também é formado por vários palhaços de pequenos circos itinerantes da Bahia, que fomos conhecendo em nossa pesquisa. Estão lá o palhaço Cueca, Cara Seca, Pinguim, Pituquinha, Barriquinha. E ainda Jonas Laborda, de nosso filme anterior, “Jonas e o Circo sem Lona”. No filme, eles não vivem personagens que são palhaços… E tem a ala dos atores profissionais com Luiz Carlos Vasconcelos, que também nos cativou por sua relação pessoal com o circo, sendo o Palhaço Xuxu (fora das telas), e Vinícius Bustani, que é uma revelação do teatro baiano e um grande parceiro nosso.
Durante os dois meses que antecederam as filmagens, juntamos equipe e esse elenco maravilhoso, num grande espaço laboratorial de experimentação e investigação coordenado pela intensa Fátima Toledo. Foi um processo incrível! Ninguém leu o roteiro. Tudo foi transmitido oralmente e o trabalho de atuação se construiu a partir daí. Dessa troca, fomos desenhando as cenas. Aprendendo com eles e transformando o roteiro. Plantando elementos na realidade para colher aquilo que ela nos devolvia.
Apostila de Cinema: Como são distribuídas as funções da equipe na Plano3 e quais são as vantagens de se trabalhar em um coletivo cinematográfico?
Haroldo Borges: Somos um grupo de amigos que já se conhece há bastante tempo. Somos como os Três Mosquiteiros. Diz três, mas na verdade somos quatro. Eu, Paula Gomes, Ernesto Molinero e Marcos Bautista.
Eu e Paula escrevemos as histórias e dirigimos, Ernesto é codiretor, Marcos o diretor de arte e designer gráfico. E nós quatro somos produtores.
A gente acredita no coletivo porque pensamos que fazer cinema é mais fruto do debate do que de uma introspecção. Para a boa saúde do filme ele deve ser o tempo todo contestado, oxigenado e submetido a confrontos muito diretos. Essa pluralidade de pontos de vista e esse intercâmbio de ideias alimenta o trabalho criativo de uma forma formidável.
As fronteiras entre departamentos se diluem e tudo fica muito orgânico. Além da relação de afeto que permeia tudo. A gente é amigo há muitos anos. Temos mais tempo nesse mundo encarando a vida juntos do que separados (risos). E essa nossa afetividade termina envolvendo o restante da equipe e dos atores.
Apostila de Cinema: João é um ator bastante envolvente. Vocês haviam testado algum outro menino para o papel? Conte um pouco mais sobre essa decisão em particular.
Haroldo Borges: Durante a pesquisa visitamos diversas escolas públicas no sertão da Bahia. Chegávamos nas salas de aula e nossa pergunta era: “menino você tem um sonho?” “O que está fazendo para realizá-lo”?
Os meninos mais empolgados eram convidados para participar de uma oficina. Lá, eles brincavam, participavam de diferentes dinâmicas, faziam cenas. Mas nada ainda relacionando com o filme. O objetivo não era bem realizar uma seleção, mas sim conhecê-los. Eles nos contavam suas histórias… Íamos para casa deles conhecer a família, saber o que mais gostavam de fazer. Eles eram tratados como se fossem personagens de uma pesquisa de documentário. Íamos registrando o dia a dia deles; a câmera estava sempre presente em nossos encontros.
Então chegou um momento que já tínhamos encontrado vários meninos incríveis, mas para viver um protagonista, onde a timidez era o traço mais marcante, os meninos extrovertidos precisavam atuar. Como estávamos com o coração no documentário, começamos a buscar um menino mais parecido com o personagem, um menino tímido. Era um gesto arriscado porque ninguém seleciona um menino tímido para protagonizar um filme. Foi então que nos deparamos com João. Na primeira entrevista, ele mal olhava pra gente. Era o candidato mais improvável para ser protagonista de um longa-metragem. Mas foi nessa entrevista, num breve momento, que vimos aquele brilho em seus olhos. O medo e o desejo estavam ali, ao mesmo tempo. Isso nos conquistou.
Apostila de Cinema: Uma das questões de linguagem que o filme apresenta é justamente a relação estreita entre ficção e documentário. Como você enxerga a possibilidade de trânsito por esses gêneros?
Haroldo Borges: A nossa experiência no documentário: “Jonas e o circo sem Lona” de 2015 foi marcante. Isso acabou modificando nossa abordagem com o cinema. Então decidimos levar algumas das estratégias que usamos em “Jonas” para “Filho de Boi”.
Queríamos viver um processo criativo que fosse marcado pela experimentação e pela possibilidade de criar e recriar diante do imprevisível, do que ocorresse. Assim, em “Filho de Boi” deixamos a porta aberta para o risco, para o improviso e para o erro, ganhando assim a possibilidade de reescrever o roteiro a todo momento.
Para isso, dedicamos 8 semanas as filmagens! Mas eram semanas de 5 diárias. Tínhamos sempre um dia da semana reservado para estudar o material que estávamos filmando e reescrever.
Escolhemos também preservar uma certa ordem cronológica no plano de filmagem para que os atores pudessem ir vivendo e descobrindo a história durante o processo.
Mas só foi possível fazer tudo isso porque somos um coletivo de amigos e sempre trabalhamos com uma equipe pequena, com alma de documentaristas. Isso significa que não só trabalhamos com bastante improvisação com os atores, mas principalmente com muita observação.
Embarcamos nessa viagem abertos a aprender da realidade, do lugar, das relações. E quando filmamos a última cena já não éramos mais as mesmas pessoas que tinham começado esse filme. Acho que essa é uma das coisas mais bonitas do cinema, se deixar tocar, se transformar.
Apostila de Cinema: Sabemos que o roteiro não foi disponibilizado para os não atores. Houve um tempo de convívio entre esses e os atores já profissionais. Qual foi o maior desafio ao adotar essa proposta?
Haroldo Borges: A lógica de não entregar o roteiro aos atores é para que eles não criem as ações sem antes experimentá-las. Estávamos buscando criar as condições para que o elenco aportasse ali algo além do que estava escrito.
Os atores naturais e profissionais estavam o tempo inteiro contando histórias através de suas improvisações. Então criamos um espaço onde essas improvisações fossem o centro de todo o processo criativo.
A fotografia, o figurino, a trilha sonora, eram ramificações do ator. Não era uma questão de cada departamento trabalhar isoladamente. Todas as áreas criativas acompanhavam essas improvisações e toda decisão criativa nascia daí. Mais tarde, o set de filmagem, virou uma extensão do laboratório. E seguimos experimentando, sem ter medo do erro.
O maior desafio foi dos atores profissionais entrarem em sintonia com João. Eles perceberam que não era uma questão de transformar João em um ator profissional, o esforço maior deveria vir da parte deles, de alcançar um nível de interpretação onde eles pudessem dialogar com aquele olhar extraordinário de João, tão cheio de verdade.
Para Saber Mais:
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Leia a crítica de “Filho de Boi”, dirigido por Haroldo Borges:
Assista ao trailer de “Filho de Boi”, produção Plano 3 Filmes dirigida por Haroldo Borges:
Assista ao trailer de “Jonas e o Circo Sem Lona”, produção Plano 3 Filmes dirigida por Paula Gomes e com roteiro dela e de Haroldo Borges: