Sinopse: Liberdade e Luta foi uma tendência estudantil universitária surgida em 1976. Impulsionado por uma organização clandestina, o grupo ganhou fama por ser o primeiro a retomar o mote “abaixo a ditadura” enquanto o AI-5 ainda vigia. Seus integrantes eram famosos pela irreverência, abertura cultural e combatividade. Libelu, depois, virou adjetivo, sinônimo de radicalidade e (para adversários) inconsequência. Quatro décadas depois, onde estão e o que pensam os jovens trotskistas que foram às ruas contra os generais?
Direção: Diógenes Muniz
Título Original: Libelu – Abaixo a Ditadura (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 35min
País: Brasil
Uma Metodologia e Vários Fins
Na apresentação de “Libelu – Abaixo à Ditadura” na sessão virtual do Festival É Tudo Verdade 2020, o cineasta Diógenes Muniz agradece à Cinemateca Brasileira e nos lembra a rota de destruição deste patrimônio audiovisual provocada pelo atual governo. Sem um arquivo específico encontrado apenas lá, o documentário faria menos sentido. Nos créditos descobrimos que se trata de um vídeo do programa “Jogo de Cartas”, em que o jornalista Mino Carta recebia importantes representantes da política nacional ou pessoas que, de alguma forma, contribuíam para o processo de redemocratização do país. É nesse rompante de mainstream que uma geração de telespectadores seria apresentada ao braço estudantil do grupo trotskista OSI, que chegou ao DCE da USP ainda durante a ditadura militar.
Trazendo alguns representantes do movimento para os corredores da universidade, Muniz se propõe a dar voz a uma multiplicidade de vozes. Partindo de um ponto em comum, aquele grupo de pessoas observou trajetórias díspares, permitindo um olhar crítico sobre a atuação política e ao discurso de esquerda no Brasil – principalmente em São Paulo, Estado governado pelo tucanato ex-centro direita e atualmente despersonalizado nas mãos que lhe restaram, a do empresário João Dória. Um filme que confronta visões que nasceram naquele período de efervescência. Passados alguns anos, alguns se transformaram em chefes de redação e editores de publicações da mídia hegemônica, como a Veja e a Época, outros viraram Antônio Palocci e Reinaldo Azevedo. Um prato que, apesar de bem temperado, está mais para um caesar salad da Vila Mariana do que um feijão com arroz de Pirituba. Acertadamente, antes de tocar nesse ponto do viés elitista de parte do movimento, a obra se preocupa em apresentar e contextualizar, para que a simples percepção do espectador mais crítico não se tornasse uma simples bravata.
Para participar do grupo objeto de “Libelu – Abaixo à Ditadura” bastava querer. Reuniões abertas, com representantes nos diretórios do interior, sua trajetória condiz com o momento pelo qual o país passava e por qual todo jovem, no meio de sua formação acadêmica, atravessa. Uma experimentação de propostas de futuro, tanto para si quanto para a nação. Concentrando futuras grandes mentes jornalísticas, empresariais e políticas, a Libelu se destacou pela modernização da forma de se comunicar – com cartazes que uniam o tom debochado e uma qualidade gráfica que tornava atraente. No discurso, o trotskismo se aliava a uma revolta inerente de quem, antes de ter o mundo nas mãos, parece acreditar que conspiramos contra a geração que se ergue.
Talvez por isso a articulação com outros movimentos que nasciam, como a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e o PT (Partido dos Trabalhadores) tenha sido mais difícil do que o naturalmente observado. No mosaico de biografias e referências que o cineasta contempla no documentário, o público não consegue traçar (porque não havia) uma linha ideológica, um comportamento padronizado ou uma possibilidade de estereotipização do membro da Libelu. Alguns destacam o rompimento com a cultural popular, outros a chacota com quem defende o Brasil com o viés de orgulho. Somente com esses dois elementos, o primeiro elitista e o segundo antinacionalista, podemos ter a dimensão da complexidade de membros e opiniões norteadoras que compunha a organização.
Todavia, se há algo a se lamentar no Brasil de hoje ao assistirmos à produção de Muniz é como – mesmo com uma polarização dissonante em relação aos rumos políticos do país – a força propagandista e da aplicação de meio e mensagem pela esquerda brasileira parece inferior aos pequenos burgueses da USP de quatro décadas atrás. Com as ferramentas que tinham e pautando pela criatividade, a Libelu chegava à população. Por meio de performances de rua ou no programa do Carta – até mesmo na instigação estereotipante da Veja. O movimento estudantil havia ressurgido em 1977, após quase dez ano. Diógenes, que opta por ser mais testemunhal e menos arquivístico, concede um peso fundamental no registro do curta-metragem “O Apito da Panela de Pressão“, produzindo pelo próprio DCE/USP (e que pode ser assistido, por enquanto, neste link que aqui deixamos no YouTube).
Uma articulação trotskista ganharia voz em meio à ditatura militar logo depois disso. Isso dá a certeza de que, na verdade, estamos no início do processo. Hoje é impensável um espaço favorável a este debate na mídia hegemônica. Basta lembrar como Jones Manoel surge na grande imprensa hoje com a imagem exotizante e supostamente perversa do stalinismo após indicação de leitura de Caetano Veloso. Pouco se extrai nos meios detentores do discurso além da caricaturas de personalidades – ou aqueles que transitam com um verniz pacificador, asseado, o mesmo que Lula precisou cunhar por quase vinte anos até chegar no poder. Enquanto isso, Jones angaria os milhares de seguidores na internet – enquanto uma farândola de lunáticos angaria milhões – de votos. O documentário mostra que parte daqueles jovens com ideais aparentemente concretos estão dentro do sistema. Alguns deles, dizem não terem sido cooptados. Outros, respeitosamente confirmam que precisavam “ganhar a vida”. Mais alguns admitem que não comungam mais da luta social pelo viés revolucionário.
No caminhar em que cada um encontrou suas motivações, várias vidas daquelas se cruzaram. Ainda tinham o Palocci também na fase adulta. Não bastasse tantas provocações, Diógenes Muniz traz para “Libelu – Abaixo à Ditadura” um dos grandes momentos do cinema brasileiro no ano de 2020 anarquizado em dezenas de festivais online concomitante: Palocci, o próprio ex-político, ex-ativista, ex-o que lhe couber chamar. Ele, não satisfeito com a contundência de sua existência na obra, ousa tomar para si o protagonismo das palavras de Paulo Leminski, comprovando que a pequena burguesia paulista seguiu caminhos diferentes, mas irreverência e deboche não se desaprende com a idade. Revolução, aparentemente, sim.
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