Sinopse: A casa de Lucicreide vira um inferno depois da chegada de sua sogra que, despejada, resolve morar por lá. Abandonada pelo marido Dermirrei e sem conseguir liderar seu lar diante dos seus cinco filhos, ela só tem o desejo de ir embora para bem longe. Sem entender a dimensão de uma viagem espacial, Lucicreide aceita participar de uma missão que levará o primeiro grupo de humanos ao planeta vermelho e é inscrita pelo filho de seus patrões, Tavinho. Ele lembra que seu pai estava selecionando uma pessoa para integrar um treinamento que levaria um brasileiro ou brasileira para Marte. Acreditando que vai deixar seus filhos felizes, Lucicreide parte para o treinamento em Cabo Canaveral, nos Estados Unidos.
Direção: Rodrigo Cesar
Título Original: Lucicreide Vai à Marte (2020)
Gênero: Comédia
Duração: 1h 30min
País: Brasil
Outro Mundo
Em uma política institucional que vem garantindo bons resultados, a Globo Filmes, em parceria na distribuição com a Paris Filmes e a Downtown Filmes lança nos cinemas “Lucicreide Vai pra Marte“, investida da comediante Fabiana Karla, em releitura de sua primeira e uma das mais famosas personagens. Mais uma estreia de 2021 que nasce prejudicada pela pandemia não curada, com expectativa de um impacto forte no faturamento. Depois de participar de outras comédias para o cinema como “Loucas pra Casar” (2015), “Tô Ryca!” (2016) e “De Perto Ela Não é Normal” (2020), chegou a vez de voos maiores à pernambucana radicada no Rio de Janeiro e vinte anos de serviços prestados à maior rede de TV do país.
A ideia de transpor figuras conhecidas do espectador de outras mídias, sobretudo a televisão, se reflete nas bilheterias – e dá essa sensação de que a produção nacional se concentra em nomes como Paulo Gustavo, Leandro Hassum e Rodrigo Sant’Anna. Fabiana se junta a Maurício Manfrini (que, por conta da relação direta com “A Praça é Nossa”, humorístico do concorrente SBT, fez uma migração adaptada com “Os Farofeiros” de 2018) nesse filão – que acaba sempre retornando o debate sobre as novas e velhas formas de expressão do humor. A transferência do eterno Paulinho Gogó para o Multishow ampliará seu alcance junto à Platinada. Por coincidência, na mesma semana da estreia dessa produção, a Globo anunciou um novo humorístico com ele, ao lado de Marisa Orth e Babu Santana.
“Lucicreide Vai à Marte” segue um caminho de reimaginar formatos. Por mais anticinematográfico que possa soar, houve um tempo em que levar personagens baseados em bordões eram feitos com roteiros tão engessados quanto. Aqui a ideia é fugir da comédia de outrora, aquela repensada enquanto linguagem pela própria Globo. Os anos de serviços prestados por Mauricio Sherman (que descobriu Fabiana Karla na porta do estúdio, em que ela apresentou Lucicreide) marcaram o rádio e a televisão, tiveram seus reflexos, mas chegou um momento em que o público queria renovação. Não à toa, o filme é dedicado a ele. A humorista, por sinal, fez uma transição bem mais natural e menos traumática do que outros colegas.
Enquanto produção em escala industrial, muitos elementos do filme chamam a atenção. Desde a cenografia marcada e eficiente que contrapõe a casa de família humilde, da migrante nordestina que sustenta com seu suor os cinco filhos e a residência da elite branca. Essa se revela em iluminação sóbria, cores frias. A fala mansa esconde a fuga dos problemas, de um casal que encontra pouco tempo junto em cena. O longa-metragem não ousa erguer lições, que surgem de forma acessória. A preocupação maior é não retomar um fluxo de piadas de reprodução de estereótipos. O trabalho de Fabiana Karla é difícil, em um projeto que resgata uma figura que lhe servia a esse propósito na leitura antiga de humor.
Nem sempre o texto conseguirá atingir o objetivo. Apesar de contar com Dadá Coelho e Cadu Pereiva como roteiristas, em parceria com Chico Amorim, todos parte do processo de reposicionamento do humor da Globo, que – apesar do sucesso de público e crítica – sofreu um grande abalo em 2020 por conta de denúncias de assédio no alto escalão. Em boa parte do tempo há um equilíbrio – um risco que se corre. Com isso, o antagonismo de Luana (Adriana Birolli) é pouco demarcado, já que a vilania depende de ironias carregadas de xenofobia e gordofobia. Já a mediação entre o uso de referências da cultura pop (como Darth Vader) e cenas com escatalogia surgem atravessadas, deixando um rastro de esquete que a narrativa conseguia fugir até certo ponto.
Não há a sensação de que estamos pisando em ovos, porque a transferência do foco na trama em uma missão que levará um brasileiro à Marte garante momentos que fujam de certas questões. São esses os momentos mais inspirados da direção de Rodrigo César e da atuação de Fabiana, por sinal. A montagem em gravidade zero ao som do frevo, por exemplo, é engraçada sem soar um regionalismo forçado. A co-produção com a Fox garantiu uma injeção no orçamento, fazendo com que esse seja o primeiro filme a gravar no Kennedy Space Center, agência da NASA localizada na Flória desde “Armagedom” (1998) e um salto de fidelidade e qualidade.
O espectador, entretanto, terá que superar em “Lucicreide vai pra Marte” duas participações especiais (para usar o adjetivo dos créditos). Todavia, sem escapatória. Afinal, nosso único astronauta tripulado no espaço foi Marcos Pontes – e não poderia ser melhor consultoria. Saudades do tempo em que sua imagem era mais vinculada a um travesseiro da N.A.S.A. (Nobre e Autêntico Suporte Anatômico) do que a uma pasta ministerial de um governo inoperante. O filme escancara o peso de sua figura institucional (e diplomática) e a importância das suas escolhas. O que nos leva a Carlinhos Maia, outra pessoa que não tomou decisões acertadas em sua vida pessoal, principalmente na organização de uma festa de Réveillon para algumas centenas de pessoas. Mesmo assim, é um fenômeno de engajamento nas redes – um profissional que se adaptou aos tempos da cultura do cancelamento subversivo, em que a polêmica faz atrair pessoas que o ignoravam – e, no meio de tudo isso, mais seguidores.
A terceira e última participação, no prólogo do longa-metragem, é muito mais simpática – e tem um curioso poder de síntese dessa transição aqui trabalhada, a da renovação da comédia. Sem mencionar nos créditos iniciais, vamos manter a surpresa para quem ainda não assistiu – mas vale o registro de que traz, assim como o altergo de Manfrini, uma proposta de “contador de histórias” – que anda em falta nesse novo humor e que ainda funciona bem mais do que as punchlines de stand up (e o estrangeirismo dá a dimensão da importação de fórmulas em detrimento de uma conexão maior com a cultura popular).
Claro que Lucicreide soaria incoerente se a atriz reformulasse sua caracterização. Sobra ainda um viés que usa a pouca educação formal e o acessa a informações como piada, uma estrada de duas vias. Há quem identificará em seu grupo uma mulher tão particularmente engraçada – e há quem olhará de forma preconceituosa. Por mais que fique o registro que o problema é, claro, do olhar do espectador reprodutor de preconceitos, uma obra pode lhe servir de ferramenta. Um embate ético que passa longe de “Lucicreide Vai à Marte“, que opta por quebrar representações, dosar sua virtude cômica, para não se expor ao ridículo.
Veja o Trailer: