Ma’Ohi Nui

Ma’Ohi Nui

Sinopse: Por trinta anos, no final do século XX, o povo do Taiti sobreviveu a dezenas de testes nucleares do governo francês em sua costa. Desde que o país foi colonizado, em 1880, as explosões deixaram o povo taitiano vasculhando os restos de suas ilhas e cultura, em um esforço para manter vivos seus conhecimentos tradicionais. “Ma’Ohi Nui” oferece um vislumbre poético do Taiti contemporâneo e das lutas coloniais que seu povo ainda enfrenta, enquanto resistem para sustentar seu modo de vida.
Direção: Annick Ghijzelings
Título Original: Ma’ohi nui, au cœur de l’océan mon pays (2018)
Duração: 1h 53min
Gênero: Documentário
País: Bélgica

Ma’Ohi Nui

Fim dos Costumes

Em “Ma’Ohi Nui” quem nos leva como guia pelo território do Taiti é uma entidade chamada Taona. Ela se apresenta como uma alma distante que surge do céu e se comunica de forma diferente com cada representação das múltiplas gerações daquele povo. O resultado é um documentário que vai a fundo na destruição ambiental e no etnocídio praticado pela França no Taiti. Um esmagamento duro do imperialismo que perdura e que faz desta região uma das mais visadas pelos turistas europeus, a partir de uma propaganda romantizada das ilhas oceânicas.

A direção de Annick Ghijzelings contempla muitas questões e é difícil até mesmo definir qual seria um ponto de partida, visto que todas são intrinsecamente ligadas. A montagem do filme, acertadamente, escolhe então uma provocação e um fato histórico. Taona, que transita por todo o filme como uma voz apenas, encontra o jovem Tanaoa na praia e define que ele, devido às drásticas mudanças territoriais e da sociedade, não pode ser considerado um taitiano. A partir daí, somos levados pelos perigos e consequências da radioatividade e dos testes nucleares que o Estado francês causou, nos mais de trinta anos que usou o Taiti como base.

Uma comunidade que, em seu passado, não possuía sequer a amarra de um um dos mais fundamentais rótulos que carregamos: nossos nomes. Eles usavam formas diferentes de se convocarem, de acordo com a situação ou o momento da vida de cada um. Até que, em 2 de julho de 1966, o primeiro cogumelo pode ser visto no horizonte. A presença francesa fez com a economia local se desenvolvesse. Em narrativa de memórias “Ma’Ohi Nui” lembra que os ganhos financeiros dos comerciantes locais aumentaram muito com a chegada das tropas em Moruroa, um atol do arquipélago de Tuamotu, onde se passam as ações do filme.

Um documentário carregado de lirismo e que se vale de representações semi ficcionais para provar seu ponto. O que poderia ter foco nessa atuação européia relacionada aos testes nucleares, vai ganhando outros contornos. Rapidamente, o filme esgota essa questão, mostrando o rastro de miséria por conta de terras que se tornaram improdutivas por força da radioatividade. A pesca, um hábito inegociável do povo taitiano (quase uma das razões de sua existência), também sofreu grande abalo.

Mas o etnocídio é ainda mais cruel porque, ao destruir as raízes culturais de determinada comunidade, torna muito mais difícil sua capacidade de reação. É aqui que Taona se desloca para uma escola e se comunica com um grupo de crianças. Em francês, porque a educação da colônia viu o ensino do idioma local ser proibido. Uma tática comum há alguns séculos, sob a desculpa de que existe uma dicotomia primitivo x civilizado e que somente o que vem da Europa tem o condão de carregar consigo o progresso. Neste ponto “Ma’Ohi Nui” ganha muita força porque encontra uma carga didática e contextualizante.

Além disso, toca em um ponto sensível. Ao fazer uma sequência de transição longa (para o padrão dinâmico da montagem do filme), um lindo trabalho de edição sobre a chegada de um navio transatlântico. Todo o processo de trabalho braçal do povo do Taiti dura alguns minutos e, rapidamente, uma nova tropa, de turistas europeus, marcha na zona turística. A alma que nos conduz pelo longa-metragem então fala diretamente sobre as tentativas francesas de continuar a exploração dos mares, uma costa oceânica maior do que todo o lado ocidental da Europa. Do jeito sereno com que ela trata as representações – após ter aguardado algumas décadas para passar sua mensagem – fala da urgente necessidade de descolonização.

A ocupação francesa destruiu não apenas os modos de vida dos taitianos. Destruiu também suas formas de pensamento. Tanto que Taona fala com as crianças assumindo uma crise de consciência e a um pescador idoso e sem perspectiva como se reencontrasse um amigo que ficou e presenciou a destruição de sua cultura. Ao reencontrar Tanaoa e falar das suas tatuagens, a voz que protagoniza “Ma’Ohi Nui” finalmente resgata uma esperança de resistência, de estancar o etnocídio sofrido por um povo que é visto com exotismo excessivo por todos nós. Em um arco de quase duas horas, sem precisar verbalizar (apesar de usar deste expediente inúmeras vezes ao longo do filme), aquela alma distante que surge no céu nos mostra como, o que pode ser uma apresentação de dança local, na verdade tem o poder de iniciar uma revolução cultural.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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