Sinopse: Após ter morrido, em pleno ano de 1869, Brás Cubas (Reginaldo Faria) decide por narrar sua história e revisitar os fatos mais importantes de sua vida, a fim de se distrair na eternidade. A partir de então ele relembra de amigos como Quincas Borba (Marcos Caruso), de sua displicente formação acadêmica em Portugal, dos amores de sua vida e ainda do privilégio que teve de nunca ter precisado trabalhar em sua vida.
Direção: André Klotzel
Título Original: Memórias Póstumas (2001)
Gênero: Comédia | Drama
Duração: 1h 41min
País: Brasil | Portugal
No Tempo do Real
Em nossas revisitações dos vencedores do Festival de Gramado, encontramos uma obra que agora já podemos chamar de duplamente clássica. “Memórias Póstumas” (no momento disponível no catálogo do Amazon Prime Video), dirigido por André Klotzel a partir de uma adaptação sua e de José Roberto Torero da obra de Machado de Assis, se encaixa bem em uma abordagem do Cinema Brasileiro que começava ali a ser abandonada.
A Retomada ainda conseguia reverberar em espaços tradicionais como o festival da Serra Gaúcha. Na 29ª edição, que aconteceu em 2001, ele saiu vencedor nas categorias filme, direção, roteiro e atriz coadjuvante para Sônia Braga – e dividiu as atenções daquele ano com “Bufo & Spallanzani” (2001). Se alinha à releitura crítica do período, que teve como um de seus primeiros sucessos “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil” (1995), um grande expoente em “Baile Perfumado” (1996) e, mesmo quando trazia um olhar contemporâneo, como foi em “Central do Brasil” (1998), tinha uma preocupação de enquadramento em contexto histórico fundamental para que certas reproduções de décadas anteriores não se repetissem.
Quem acompanha nosso trabalho aqui na Apostila de Cinema, sabe que não celebramos esta era como um momento perfeito. Há suas questões e problemáticas que acabaram superadas a partir de novos fazeres audiovisuais no país. Todavia, é inegável que “Memórias Póstumas” caiu como uma luva nesta proposta estética e narrativa. Em um texto que atravessou a História pelo toque de inauguração do Realismo, Machado sempre soou como um viajante do tempo, deslocado no século XIX que ele parecia dominar mesmo sem sair das ruelas entre o Centro do Rio de Janeiro e as Laranjeiras. Talvez até por isso o defunto com a imagem de Reginaldo Faria – naquela época já icônica para o Cinema Brasileiro – mencione que sua morte havia acontecido “há mais de cem anos”. Ou seja, temos um protagonista que chega no tempo presente para trazer suas memórias.
A história do homem de 64 anos que começa a contar sua vida enquanto fantasma atravessou gerações, é mencionada como referência até por Woody Allen e tem na linguagem audiovisual a possibilidade de renovação – ante um magnetismo natural. O cineasta, contudo, opta pelo clássico nas representações. É teatralizado, mas pinça ferramentas típicas do melhor que o cinema promove. Faria domina a tela, tanto na narração que parece não soar excessiva (apesar de comandar as ações em quase todas as sequências) quanto nas exageradas quebras de quarta parede quando se aproveita por ser um espírito não identificado.
As representações permitem que os elementos que mais se destacaram na Retomada ganhem forma. A bonita direção de arte de época, as menções à História do Brasil como atravessamento da obra e o uso de imagens e ilustrações clássicas na montagem como uma quebra narrativa que traz certa familiaridade. Enquanto adaptação literária, sua busca por fidelidade deve agradar aqueles que a buscam – os professores de Literatura em escolas secundaristas com acesso ao filme deve ter gastado essa fita. Parte da fina ironia e do olhar apurado que faz dos romances de Machado de Assis uma mistura de romance e cronismo também está presente, apesar de não com tanta profundidade.
Isso permite que os temas periféricos de “Memórias Póstumas” apareçam, principalmente na segunda metade. O protagonista enquanto homem que tem pela frente uma trajetória natural de sucesso, com planos estabelecidos a partir de seus privilégios, já encontrava quebras de expectativas que só um criador do talento de Machado atingiria naquela época. Do estudos no Direito às pretensões políticas, o personagem parecia ter uma vida programada. Mesmo com os tropeços do destino no caminho, como o que leva Eulália na primeira epidemia de febre amarela, mais uma que a Humanidade assistiu uma profusão de vítimas por culpa da mistura de desconhecimento e ignorância. Parece que há movimentos da sociedade em desalinho com a Natureza que nunca envelhecem.
Isso nos leva ao grande aspecto da personalidade de Brás Cubas: a sua relação com a morte e a mutação dela através de sua vida. Nas reflexões a ideia de legado ganha forma e a parte final de “Memórias Póstumas” encontra o tom para finalizar um longa-metragem que não se deixou ser apenas uma homenagem. Começa com a assustadora ideia (para o momento) de ser um homem de posses sem herdeiros. Depois ele ensaia deixar um legado materializado, em um produto que atravessaria o tempo (e atingiria até mesmo o período da Semana de Arte Moderna, como se observa na representação de “Operários”, de Tarsila do Amaral em 1933). Termina pensando no filho que nunca teve, consolando a si e justificando a nós por não deixar a ele o “legado de nossa miséria”.
Enquanto isso, Reginaldo Faria dá à fisionomia do personagem um ar de lamentação. Nos últimos frames encontra-se sintetizada toda a complexidade das representações de Machado de Assis – e porque seu texto é um daqueles que temos certeza que será imortal.
Veja o Trailer: