Leia a crítica de “Meu Nome é Bagdá”, que estreia esta semana nos cinemas.
Sinopse: Bagdá é uma skatista de 17 anos, que vive na Freguesia do Ó, um bairro da periferia da cidade de São Paulo. Bagdá anda de skate com um grupo de meninos skatistas do bairro e passa boa parte de seu tempo com sua família e as amigas de sua mãe. Juntas elas formam um grupo de mulheres pouco convencionais. Quando Bagdá finalmente encontra um grupo de meninas skatistas, sua vida muda.
Direção: Caru Alves de Souza
Título Original: Meu Nome é Bagdá (2021)
Gênero: Drama
Duração: 1h 39min
País: Brasil
Leal aos Princípios
Mais do que a luta para se manter enquanto indústria estabelecida e criadora de empregos. Mais do que o reconhecimento internacional em seleções para mostras e troféus nos principais festivais do mundo. O audiovisual contemporâneo brasileiro precisa (ainda) quebrar (ainda mais) a barreira de conexão com os mais jovens. A partir deles, a naturalização de nossas expressões de cinema, que comungam manifestações populares da cultura com a arte política e representativa, atingirá seu fim. Talvez isso não soe como elogio, mas é: “Meu Nome é Bagdá“, que chega ao circuito comercial do país nessa quinta-feira (além de mais de cem salas da França), não está sozinho em sua proposta – e é daquelas obras feitas para o diálogo urgente da sociedade.
De construção coletiva, reunindo no elenco da Britney’s Crew às presenças ilustres de Karina Buhr, Gilda Nomacce e Paulette Pink. O elemento que mais chama a atenção à primeira vista é o skate, claro. A protagonista vivida por Grace Orsato é uma adolescente que usa a atividade como forma de expressão. Ao longo de pouco mais de uma hora e meia, a cineasta Caru Alves de Souza nos levará a transitar por vários espaços, que ultrapassam um dos esportes (agora) mais populares do Brasil. Uma legitimidade difícil de obter, que sofre perseguição até bem pouco tempo. Arte e comportamento de rua, nos territórios urbanos que encontram as primeiras gerações que nascem e crescem nesses espaços, remonta aos anos 1980. Toda a cultura que se desenvolve ali se tornou alvo – algumas são até hoje.
O que fez do skate um ponto fora da curva foi um processo. Uma união de propostas e criações que o levaram como elemento. Do pop rock nacional, já em vias de extinção dentro da cultura pop, o sucesso do Charlie Brown Jr. pelo carisma de Chorão. No cinema ao redor do globo, temos de “Paranoid Park” (2007) de Gus Van Sant a “Os Reis de Dogtown” de Catherine Hardwicke. Até que os tentáculos do capital viram uma ótima chance de cooptar a atividade e esse é o grande passo para a aquisição de legitimidade de qualquer causa, essa é a verdade. Diversas competições e a criação de ídolos, que ganharam ainda mais força quando se transformou esporte olímpico em Tóquio.
O ano de 2021 ficará marcado, entre outras coisas, pela presença do skate em rede nacional de televisão aberta. Com as medalhas de prata de Kelvin Hoefler e Rayssa Leal (de apenas 13 anos) e a de bronze de Pedro Barros, uma sociedade carente de campeões viu em suas figuras uma nova chance de ascensão. Com a chancela dos jovens, que há muito romperam a resistência com a atividade. Eles, então, deveriam se conectar com “Meu Nome é Bagdá” na primeira oportunidade. Não apenas porque o filme parte de uma protagonista que, como já dissemos, usa o skate como forma de expressão. Porque ele vai bem além disso, contemplando os atravessamentos que tornaram a urbanização um convite à pluralidade, igualdade e tolerância – por mais que nada disso tenha se materializado até hoje.
Bagdá é apresentada no meio de uma simbologia vinculada ao masculino. A cineasta, então, remove o que poderia ser uma lupa para propor um recorte social específico e faz a narrativa mitigada ganhar contornos de um mosaico. Das pistas que beiram as calçadas paulistanas da Freguesia do Ó, um grupo de mulheres trocam informações sobre maquiagem e um grupo de homens na barbearia deixam seus cabelos na régua. O espectador tem contato com os símbolos e a codificação própria do skate, ultrapassando a questão de gênero, mas absorve que a vida de qualquer um deles não é só isso. Não é um rótulo colado por cima de outros, não se sobrepõe a nada. Além disso, todos os comportamentos sofrem influência dos diversos espaços que a personagem transita, como agente ou observadora.
No salão de beleza, uma mulher trans divide um pouco de sua intimidade enquanto trabalho. No tempo livre, Bagdá faz sua parcela de molecagem ao zoar o plantão de um cara com uma camisa parecida com a da Seleção Brasileira de futebol – cena perfeita para ilustrar os tempos de avanço do conservadorismo e sua própria cooptação de símbolos sem soar didático. Por sinal, o didatismo não ganha muito campo em “Meu Nome é Bagdá”, à exceção do final. Ao contrário de outro longa-metragem especial dos últimos anos, “Cabeça de Nêgo“, Caru aplica um olhar quase totalmente observador até a ponta final da história. Já Déo Cardoso, por exemplo, segue na dupla abordagem de maneira pulverizada.
Ao contrário de obras mais focadas em temáticas, como é a sexualidade e gênero de outros destaques dos últimos anos como “Alice Junior” e “Valentina“, observa-se a necessidade de arrematar algumas intenções em diálogos mais diretos. Ao retratar a complexidade da São Paulo cosmopolita, corria-se o risco de se ler a premissa de despadronização de outra forma, como uma alegoria em que “se há de tudo, eu posso ser o que quiser”. Entretanto, não pode ser racista, machista, homofóbico… Assim como Issa Paz em seus versos colocados como parte da narrativa, é fundamental respeitar os corres de todas.
Apesar da lateralidade das representações, a diretora aproveita o skate como base de construção de bonitas imagens. “Meu Nome é Bagdá” é um filme marcante, para além do público-alvo. Seus prêmios ao redor do mundo, incluindo o Grande Prêmio do júri Generation 14plus do Festival de Berlim do ano passado são a prova disso. Seu arco final, desenvolvido, para não deixar dúvidas das referências que o filme procura, só prejudicam a experiência de quem já está mergulhado no que ainda podemos chamar de indústria audiovisual brasileira. Só que a produção não é apenas para eles – ou não deveria ser. E os efeitos desta decisão parecem engradecer ainda mais a obra.
Veja o Trailer: